quinta-feira, 29 de agosto de 2013


 

 
Foto: autor; casarão do séc. XVII - Morro de São Paulo, Bahia.2013.


  O que nos leva a galgar a íngreme incerteza desses dias

 
Mas, como me falava ainda outro dia, em significativa mensagem, o meu amigo do Poço da Panela, escritor e poeta (bom de prosa), Pedro de Albuquerque,  pernambucano de sangue nobre:  “tudo o que eu queria, mesmo, neste instante, era estar trepado no terraço de um sobrado, de frente para o mar, bem no alto de um dos casarões do Pelourinho. Quem sabe ali, pelas sagradas Portas do Carmo, sentindo o cheiro de toda a sua gente, arfante e suada. Comer um acarajé, bem crocante – e com muita pimenta! Só para refrescar o estômago. Esmagar, no prazer palatal que tonteia, a delícia de um camarão torrado com a força dos maxilares.

(Ah, aquele camarão! O que veio de brinde; a baiana foi tão generosa!)

 
Ver tudo trepado e espremido, como Gilberto Freyre, a testemunhar os seus morros a parir o Brasil. Falar mal dos Jesuítas para, depois persignar-me, diante do Senhor do Bonfim. E, poder acreditar no eterno, perplexo com o permanente...”

 
A velha cidade que se revela contente. Esta é a minha cidade. Quando estou em Salvador, e tenho oportunidade, e sem outros maiores compromissos,  gasto um bom tempo nas livrarias do centro,  principalmente  nos  sebos da Rua da Misericórdia. Ali, meio que escondidinhos, entre o remanescente barroco de casarões decaídos, e fachadas de vidro e aço inox do modernoso hodierno,  esses antigos alfarrábios estão ali, bem atrás da Rua Chile. Um achado. Envolto no mistério que me atrai.

 
Sair por aí,  a perambular sem destino certo, nutre a alma da gente. Da Rua Chile, em passos largos, logo  alcanço a Misericórdia.  E lá vou eu. Sigo no rastro desses livros raros. O cheiro dos sebos transmite certo mistério, no que encaderna o volume, que a um tempo foi amado (ou odiado), e manuseado a contento. A essência de um tempo e de seus antigos donos,  uma leve  idiossincrasia.

 
Aprecio o cheiro do livro. Se velho, me traz mensagem na lembrança. De alguém, em algum lugar distante. Se novo, viajo nas suas páginas. Mas, acima de tudo, olho e admiro nos livros; alguns o seu próprio peso. Outros, pelo seu desdobramento cultural – no espaço e no tempo. Que nem Dom Quixote, meu velho conhecido companheiro, habitante de uma estante desarrumada, e de onde subtraí algumas folhas, do cavalo Rocinante, obra do grande ilustrador francês, Gustavo Doré. E meu pai, sem a continuidade da sua leitura, irado ficou. Arquei com as consequências e tudo se acabou. Tempos de infância.

 
Pois é, o livro dialoga com outros códigos. Mas, por defasagem, os livros também poderão não ser mais lidos. Decretada a múltipla falência  de seus códigos, logo serão jogados a um canto. É morte certa.

A leitura desse mundo cotidiano,  faz tempo, vem se afastando dos métodos tradicionais fixados pelo livro ortodoxo. São esses, inegavelmente, os tempos da leitura eletrônica. Vejam só, alguns amigos já entraram nessa onda, mas eu, pelo menos por enquanto, ainda não me decidi. Na verdade ainda não caí de amores pelo e-book.  

 
Inegável é a influência da imagem, de cartazes, outdoors, luminosos e letreiros outros, recursos utilizados na propaganda de produtos diversos. É grande a variedade desse material, em placas à beira de estradas. A gente vai por aí viajando e, de repente, temos a nossa atenção captada pelo texto  insurgente. Às vezes é figurativo, sem legenda. Compreensível.  Esteticamente feio, digamos assim, mas  atraente.  Atrai a nossa visão. Questão de pronto reflexo, pois foram construídos em cima dessa estratégia. Inter-relação imediata. Trata-se de uma invasão retiniana, sem dúvida. É de cansar a menina dos meus olhos!  A minha e a sua.  E a de muitos outros.

 
Como dizia Apollinaire, é preciso que a nossa inteligência se habitue a entender sintático-ideogramicamente, ao invés de discursivo analiticamente. Eis aí o processo acelerado das mutações da linguagem da nossa época! Adoro o livro, digo e repito, por ser um gerador de sentimentos. Sem dúvida, trata-se de  um objeto no espaço. Se o livro impõe limites, físicos e formais, também impõe uma leitura de uma lógica, no discurso da própria linguagem.     

Particularmente, vejo o livro como matriz de sensibilidade. Mas, acima de tudo, objeto de linguagem. Por isso cuido bem dos meus. Tenho ciúme deles. De vez em quando faxino as prateleiras da estante e, com carinho, vou tirando a poeira intrusa.   Aprecio cada volume, distintamente. Até sinto o cheiro e a lembrança de algum lugar, a um tempo qualquer. Faço leitura sinestésica. – Eu sinto seu corpo em minhas mãos!

 
Por questões de segurança, quando estou em Salvador, costumo dirigir-me ao  Shopping Center da Barra.  Uma atração à parte,  pois também aí, adoro o insubstituível aroma do café passado na hora, especialidade da pastelaria árabe. Um bom café expresso. Seus grãos de nobre cepa, Rubiácea ou Arábica, reservam o prazer da satisfação volátil. E, sem açúcar!  O ciclamato de sódio termina por matar o deleite de papilas gustativas. E, o meu também.

 
São tantas as lojas! As vitrines, iluminadas e chamativas, são um convite ao pecado! Sábia, pelo menos em matéria de discernir, o desejado do não necessário, aprendi com o tempo a não sucumbir à vil tentação dos modismos. Mas,  tem um detalhe, eu só uso, de preferência, roupa sob medida. Simplesmente me dou ao luxo de ter uma modista ao meu dispor. Mestra no que faz,  ela é uma senhora cajaibana, costureira de nome em Valença, por isto muito requisitada. Carinhosamente chamada de Nini, uma profissional de talento. E como ela sabe medir! E cortar bem! E costurar!  Como ninguém mais. Costumo dizer: que tesoura de ouro! E não é só para agradar. Ela é mesmo preciosa! Pelo menos para mim.

 
Mas, nada como andar ao ar livre, permitindo que venha o inusitado acontecimento, somente para renovar o sedimento cansado de acontecimentos passados. Para mim, a moderna atmosfera de lugares confinados, costuma ter um cheiro plástico, inorgânico. Talvez devido ao ar condicionado central, o que para mim, às vezes, se torna sufocante, principalmente se não tenho a intenção de fazer compras.

 
Mas, cadê a bandeira?! Me convenci, definitivamente, que já expulsaram os holandeses daqui. Lembrei-me do meu caro amigo pernambucano, Pedro de Albuquerque. É que já sentia falta da representação consular holandesa, bem ali, no topo da ladeira. Sinal dos tempos.  Eles já não se encontram mais no largo do Carmo! O belo casarão colonial ibérico a mostrar suas portas escancaradas, de onde já via passar alguns carregadores, suados trabalhadores da construção civil  com os carrinhos de mão cheinhos de debris. Provavelmente pertenceria este notável casarão  a outro dono, visto que  já passava por uma densa reforma.

 
Aliás, estas ruas do Centro Histórico de Salvador, atualmente,  já não são tão seguras, principalmente para se transitar às escuras. Percebi no que residia ali, bem defronte ao Convento do Carmo,  o vulgar banal desses dias –a presença ostensiva de um policial armado. À sombra da tarde de um velho muro, via-se mudo. Em seu ofício de olhar e zelar por outros, indiferente,  por não mais ter o que fazer, assim passava seu tempo, a brincar com os próprios dedos. A conversar consigo mesmo.

 
Subir e descer o Pelourinho, por aquelas íngremes ladeiras, calçadas de pedra redonda, e sem medo de escorregão, é  galgar a íngreme certeza de que –, Deus, é mesmo brasileiro!

 
É na aragem fresca das tardes de Salvador, sentindo o sopro úmido da sua baía azul, que penso estar mais perto do céu. Ao lado de seus anjos barrocos, negros baianos– descendentes de alforriados contentes- e dos não legitimados, fruto de paixões exacerbadas ('petra scandalis'), que os jesuítas caolhos ignoraram -  bastardos morenos tupinambás, gerados por cunhatãs, escolhidas, ao leito do português Diogo Álvares, escondido nos arrecifes de 'Maiririguig', na embocadura do Rio Vermelho.    Sinto no ar toda a organicidade de Salvador, lama de seus becos recônditos, chão de patife, às vezes palco de afogados, daqueles desesperados, a boiar em águas de pensamento raso. Tudo de bom e de ruim aqui convive, lado a lado. E é nessa convicção que se pode alcançar a graça dos cinco mistérios gozosos ou, a reencarnação do santo preferido. Um estado de graça. É tudo isto  o que nos leva a galgar no prazer a íngreme incerteza desses nossos dias.

(“Nada mudou por aqui”– Amália Grimaldi)

 
 
 

2 comentários:

  1. Aí, Galícia!



    Tanta beleza deste Estado de Graça: A Bahia de Todos os Santos de São Salvador!




    Tudo isto é o máximo da ficção: a realidade.




    Somente em inglês, eu encontro a palavra certa pra traduzir: "utmost".




    Camões, Pessoa ou




    Deve ser a minha ignorância da língua pátria. Mas, vou-me socorrer de algum filólogo. Pena que só os poetas, vivem as nuances vivas da palavra viva no conotativo. Os filólogos, são como os escribas das tumbas de Queops: embalsamam-na e embalsamam-se no sarcófago do denotativo.




    Unicamente a semântica de um poema, mantem-lhes vivas. No mais, restam múmias no mofo dos dicionários esquecidos nas prateleiras dos sebos e das bibliotecas.




    Daí, vem o instante mágico da ressurreição no dedo atento de um poeta desesperado por sua melhor expressão. ,




    É mais do quê amabilidade as suas palavras. Pois, são vivas expressões da alma. As palavras podem até fingir. O poeta pode fingir. As almas não. O vão-se aos diabos, ou aos bafejos de todos os santos da Bahia do Nosso Senhor do Bonfim. apesar de tantos jesuítas.




    Mas, o quê seria das nossas crônicas sem estes arautos da Inquisição?




    Tudo vale a pena, quando a alma não é pequena: assim fala o português da tabacaria.




    Vai um beijão!




    Pedro

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  2. Pedro,agradeço tão nobre comentário.

    Realmente, é nas palavras que encontramos,

    muitas vezes, o céu das tardes claras, quando

    deslizam nuvens raras...

    Abração,

    Amália

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