segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

Para Eduardo Almeida:


O índio que falava francês

 

Brasil Central. Latitude 14 Norte. Outubro de 1982. Já caía a noite. Da minha base, na aldeia Karajá de Hãwàló, denominado pelos colonizadores religiosos de Santa Isabel do Morro, às margens do rio Araguaia, na Ilha do Bananal, um remoto posto indígena, a esse tempo administrado pelo indigenista Eduardo Almeida.

 

Em São Félix do Araguaia, na margem oposta do rio, já nos limites do estado do Mato Grosso com Goiás, hoje Tocantins,  ficava a paróquia sede do bispo Dom Pedro Casaldáliga.  Fundador da Pastoral da Terra, era ele ideologicamente considerado homem perigoso. Sob um regime politico autoritário, os militares ainda no poder,  este religioso era vitima de variados tipos de repressão. São Félix do Araguaia, para nós funcionários da Funai, tornara-se lugar proibido, perigoso. Um terreno minado. Havia gente nos olhando, vigiando. Cochichos e delações, era prazer de muitos. Algumas vezes estive aí visitando o bispo. Privilégio meu. Hoje disto tenho consciência. Assistia discussões em torno de assuntos beligerantes. O índio e o posseiro e principalmente, sobre o assistencialismo por parte do órgão federal que assistia aos índios.

 

Missão de trabalho. Rumo norte alcançaria a aldeia de Macaúba. A seguir, a aldeia Javaé. Alcançando o rio Tapirapé, a aldeia do mesmo nome e na mesma área, uma pequena comunidade Karajá. 

 

Mineira de Pedra Azul, Rosinha, moça tímida, era uma professora recém-contratada pela Funai. Seguiria viagem comigo.

 

Percalços de viagem. Uma aventura invulgar marcaria as nossas vidas a partir de então. Diria que,  prenúncio de tragédia anunciada, mas que felizmente não chegou a acontecer. Tornamo-nos amigas. Rosinha deixava entrever na sua face a expressão de natural preocupação. O encontro direto com um mundo desconhecido até então. Sua destinação seria o posto indígena da aldeia Karajá de Macaúba, à margem esquerda do grande Araguaia.

 

Comunicação precária. Valia-se do rádio ou do telégrafo. Não havia ainda nesse tempo telefone celular, nem tão pouco computador.  Caberia ao chefe do posto de Macaúba, o gaúcho Lourenço, o manejo daquela parafernália. Seria um meio de sobrevivência frente ao inesperado.

 

Isolada, longe do meio urbano, Rosinha teria que se fazer valer do seu bom senso. Sabedoria seria companheira. Ser corajosa afastaria os medos. Uma vez por mês, às vezes nem isto, teria a visita de um dentista, do médico e da enfermeira que viria aplicar as vacinas necessárias.

 

Como de costume, a cada três meses, seguia eu em missão de trabalho. Durante a estação das cheias, o transporte, muitas vezes precário em barcos relativamente pequenos, eram sempre cheios. Os pequenos aviões que se fretavam, os monomotores, estariam disponíveis somente na época da estiagem. Nessa específica área de mata isolada, entremeada por rios e lagoas, eu era a única dentista disponível a serviço da Funai. Por dois anos permaneci como tal. Até que um dia, o coronel, chefe do departamento de saúde em Brasília ao qual estava subordinada, olhou para os belos desenhos que  estampava. Belos motivos Karajá que a Xureréa, mãe do Korihete e antiga mulher do cacique Maluaré, havia pintado nos meus braços e  mãos,  com tinta de jenipapo e carvão.  Virando-se para o assistente ao lado, o coronel, ironicamente perguntou: "é esta a dentista que queria se tornar índia?!"  Apenas o início do meu fim. No regresso das minhas férias em Salvador estaria, irrevogavelmente demitida.

 

Atrelada à uma equipe técnica mista, viajava  rumo às comunidades indígenas. Contornando a Ilha do Bananal, navegando o braço menor do rio Javaés, chegávamos à aldeia Javaé e de Macaúba. Rio acima, alcançávamos o Tapirapé, e a aldeia indígena do mesmo nome.  

 

Calor infernal, mosquitos e desconforto. Nossas vidas estariam, literalmente falando, nas mãos de Seu Manoel, um conhecido barqueiro, homem nativo dessa região, considerado bravo e corajoso. Na sua experiência, de muitos anos, sabedor de cada curva do rio, tornara-se ele muito respeitado. Confiável.  Com ele acreditava-se em viagem segura.

 

Término da estiagem. A cada curva do rio, que ainda se estreitava devido ao avanço das praias, os bancos de areia se revelavam traiçoeiros. O Araguaia, entre o nascente e o poente, exibia a maravilhosa paisagem. Única. Novos eventos. Cada viagem revelava surpresas. Jacarés enormes, sonolentos lagartos me lembravam dinossauros. Um olho fechado e outro aberto, mas  despertos, pareciam em sono profundo.  Seus ouvidos estariam bem abertos a qualquer movimento mais próximo. Um passante incauto, ave desavisada, capivara sedenta, por certo cairiam logo no papo do faminto jacaré. Natureza pródiga. A cadeia alimentar aí se completava. Seus dentes, juntamente com a força de portentosa mandíbula, causavam receio. Animal poderoso. Todos nós tínhamos medo dos jacarés. Talvez por sua bizarra aparência. Quando da aproximação (intrusa) no seu habitat certamente se sentiriam ameaçados.

 

Seguíamos viagem de maneira plácida, mas atentas aos obstáculos, geralmente pedaços de pau, troncos de árvores que caíam dos barrancos costeiros o que poderia causar acidentes. Poderiam danificar a hélice do motor do barco.  Acompanhávamos enlevadas  cada detalhe daquela deslumbrante paisagem que ia se revelando a cada curva do rio.

 

Finalzinho de tarde meio nublado. Qual manto envolvente, assistíamos a descida daquele sinistro cobertor, um manto de nuvens escuras.  O horizonte à nossa frente subitamente desapareceu.  Inflado os medos,  diante de tal aviso, o qual não se poderia ser ignorado, visto que já  soprava, um forte vento de proa.  Eliminadas assim possíveis dúvidas, chegou-se à uma sábia decisão. Seria de boa prudência passar a noite num daqueles bancos de areia. O mais alto possível! Desnudado pela seca do verão, mas que já se ía tangido pelos ventos da nova estação, as águas do rio já subiam de nível. Aí, não correríamos prováveis riscos. Pelo menos assim se pensava.

 

Seu Manoel, cauteloso, diminuiu a marcha do motor. Aportou bem devagarzinho às margens do alto barranco. Cuidou logo de levantar a rabeta do motor  a fim que esta não viesse a bater na areia. Correria o risco de danificar-se. A seguir, desembarcou parte da bagagem. A minha  gorda mochila, a dele e a da professora Rosinha, também avolumada.

 

Trazia o barqueiro, como de costume em missão de viagem longa, uma manta plástica de bom tamanho. Quanto a nós, as duas mulheres, já fragilizadas pela perversa besta do medo crescente, não trazíamos coisa parecida. Proteção, em caso de chuva num barco aberto. Talvez por esquecimento, não se cuidara antes desses pequenos, mas importantes detalhes.

 

A chuva já se avizinhava. Apavorante. Traria com ela um forte temporal, com a potência energética de  raios e trovões. Fenômeno muito comum  a essa época de final de outubro.

 

Curiosa, notei que Seu Manoel ia cavando com as suas largas mãos na areia molhada um largo buraco. Esculpiu, na sua experiência sertaneja, um largo espaço, não tão fundo, mas o suficiente para caber encolhido o seu avantajado corpanzil. Valor inestimável, aquela  sua inseparável maleta de executivo, uma  007 de couro negro, carinhosamente, junto ao seu corpo logo acomodaria.  Seu Manoel conservava-se calado. Apenas agia. Então entendemos que deveríamos fazer o mesmo. Por sorte, ainda havia de reserva no barco  outras mantas plásticas. Não tão largas como a dele, mas serviriam, pelo menos para cobrir as nossas cabeças. Seu Manoel, sem dizer uma palavra, gentilmente, no seu jeito caboclo, logo nos ofereceu.

 

Antes de adentrar na sua alcova-buraco, Seu Manoel  abriu a maleta 007 e daí tirou uma arma – um revólver! Meu Deus! Pelo tamanho imaginei tratar-se de um trinta e oito. Já tinha visto coisa parecida em crônicas policiais de jornal. Rosinha e eu, ainda com muito medo, não tínhamos palavras para retrucar. Nunca na minha vida havia tocado numa arma! Rosinha tão pouco.

 

“Não façam cerimonias! Qualquer coisa... Podem se servir!!!.” Expressado, de uma maneira tão natural, com tapinhas sobre o volume que descansava sobre a sua maleta. Isto soou para nós como uma espécie de caçoada. Homem prático e viajado, Seu Manoel não tinha mais ou menos. Ia logo direto ao ponto. Ao que falava se dava crédito. Pelo menos por questões de sobrevivência. Aliás, nunca escutara  antes, principalmente tratando-se de um cavalheiro rude, tamanha ‘gentileza’.

 

Rastejante, como um lagarto, via quando Seu Manoel  jeitosamente se enfiava sob a larga manta. Logo via-se coberto, na sua alcova-buraco, ao lado de valioso pertence –, a sua maleta 007.

 

Tremendo de frio, e de medo, meio aterrorizadas, Rosinha e eu significativamente  nos entreolhamos.  – Meu Deus! O que será da gente! Pensei preocupada. Acho que ela também. Este foi sem dúvida um dos momentos da minha vida em que mais me senti indefesa. Nem  durante as minhas andanças pela vasta selva amazônica, entre Colômbia, Peru e Brasil.  Trecho problemático com o tráfico de drogas, animais silvestres e madeira, faixa de fronteira tríplice, onde vivi por cinco longos anos, não me sentia desse jeito. Diria desvalida. Entendi a lição. A partir daquele momento, sem pai nem mãe, seria cada um por si e Deus por todos.

 

Caiu a noite. Interminável. Tão densa como a forte chuva.  Mas esta durou breve. Uma meia hora, talvez. Quando cessou de pingar, dos arbustos sobre os nossos telhados, providencial plástico de toalhas de mesa com adornos de abacaxis e bananas, algo novo já nos incomodava sob as vestes.  Enormes formigas, as conhecidas andadeiras, passeavam sobre a nossa pele. Um tormento.  O buraco se encheu delas. Não mordiam, mas incomodavam com a coceira irritante.  Na verdade éramos corpos-vivos, mas sentíamo-nos quase defuntas.

 

De longe nos alcançava o esturgir de onças e os mil ruídos de bichos outros.  Ameaçador.  Tão longe e tão próximo! Este era o som da floresta circundante que tomava conta da noite. Ninguém ali iria dormir. Talvez cochilasse um pouco. Por questões de sobrevivência, nem é preciso dizer, acho que ninguém, em sã consciência, conseguiria dormir numa situação daquelas. Procurei afastar a lembrança temerosa da tarde. Aqueles enormes  jacarés ao longo das praias, não muito longe de onde estávamos.

 

Lanterna prestativa. Seria uma boa arma de salvação, pelo menos assim pensava. Com frequência clareava o mostrador do relógio. Acho que estas foram as horas mais arrastadas da minha vida. Finalmente aliviada, assistia aos primeiros sinais de um final prolongado de uma madrugada sinistra.  A radiosa aurora, cuja luminosidade, resplandecente no céu ainda meio escuro, logo desvaneceu os maus presságios. Aos primeiros lampejos do sol logo partiríamos. Sem o café da manhã. Na ansiedade, enchemos o nosso estômago com água e muitas bolachas, uma atrás da outra.  Só nos restava sonhar com uma mesa bem posta. Talvez com sorte,  pão torrado e banana frita e, o aroma volátil de um café recém-coado. Apenas miragem distante. Ilusão de faminto.

 

Paramos em Macaúba. Fomos bem recebidos pelo chefe do posto, o gaúcho Lourenço. Curiosamente ele era casado com a índia Suyá,  a filha do velho Karovina, um dos chefes da aldeia Karajá.  Comemos bananas cruas, e beijus sem sal. Ao invés de café, somente  água fria do pote, gentilmente oferecida. Abastecemos o barco com as frutas que Lourenço amavelmente nos ofertou.

 

Despedidas. Abraços, recados e recomendações. A professora Rosinha ficou. E nós, o barqueiro e eu, partimos. No barco, restou um enorme vazio. Sentíamos falta da mineirinha de Pedra Azul. Embora calada, sua presença somava esforços. Companheirismo.

 

Finalmente, já no Tapirapé. Preocupada com o tempo, comecei a pensar como seria a volta a Santa Isabel do Morro, a minha base já tão distante. A estação das chuvas comumente trazia incertezas. Algo me dizia, que após missão cumprida, como em outras ocasiões, regressaria sã e salva.  Remeteria à Funai em Brasília para avaliação de praxe, os muitos papéis, geralmente  em quatro vias, relatórios de mais uma atuação. Quanto à  minha pessoa, restariam muitas dúvidas, e questionamentos lógicos quanto a duvidosa empreitada. Por sua honesta posição, sempre ao lado dos índios, o indigenista Eduardo Almeida, terminou por ser dispensado. Uma pena.

 

Xaropes ineficazes. Remédios vencidos. Afinal, para quem seria o benefício?  O almoxarifado continuaria repleto desses vencidos. O malefício estava feito. A mortalidade infantil era fato. Quantas vezes se discutia com o bispo esta espécie de atuação. Estratégia velada de possível genocídio?

 

Após seis horas de “voadeira” rio acima, finalmente desembarcava. Os índios, sorridentes, ajudaram a transportar pelo barranco acima as tralhas necessárias ao trabalho de “arranca-dentes”.  Caixas de suprimentos variados. Trazia velas e fósforos, também açúcar, café e biscoitos, coisas que dividiria com os índios. Seriam artigos indispensáveis para um mês de permanência, No final ficaria desprovida mas comungava o bem comum. Comia satisfeita a comida de todos.

 

As senhoras, missionárias católicas, as simpáticas irmãzinhas francesas da ordem de Santa Tereza, vieram me receber com sorrisos de boas-vindas. Apesar do calor sufocante, trajavam-se elas, invariavelmente, em seus hábitos negros. Os índios, se viam livres de adereços, alguns de calção e outros, na sua maioria, andavam seminus. Questionável era a presença das missionárias católicas por parte de antropólogos ortodoxos. Mas, bem ou mal, dia e noite, estariam elas prontas a arregaçar as mangas, assistindo a comunidade na medida do possível.

 

Partos complicados.  Malária e disenteria. Males comuns. Fisgadas de arraia eram comuns aos homens que saíam para pescar. Acidentes ali não faltariam. Médico, só de muito longe. Às vezes levavam três meses para chegar até ali. A depender da gravidade vinham de Brasília, pois o da base encontrava-se  sempre em deslocamentos. Fazendo cursos ou em campanha de vacinação.

 

As missionárias francesas, responsáveis pela catequese dos índios, eram de um apoio logístico inestimável. Principalmente a irmã Maria. Enfermeira graduada, já havia atuado na África, no programa do Sem Fronteiras. 

 

Graças ao aparato radiofônico da missão, podíamos solicitar um barco ou um avião a fim de conduzir o funcionário de volta à sua base. A estas alturas  as águas já estariam bastante altas e a viagem de avião monomotor se tornaria quase inviável. Voltaria de barco outra vez, torcendo para que fosse o de Seu Manoel.

 

Andava pelos estreitos caminhos da mata entre a aldeia e a sede da missão. Bem, não sei onde começaria a realidade ou onde terminaria a minha vã fantasia.  “Bonjour mademoiselle!”, Era a voz do índio Romany. Espantou-me tal saudação. Bizarro, vinda da boca de um índio Tapirapé.  Naquele longínquo meridiano de uma isolada selva mato-grossense, imaginei possível ordenação, equivocada da luz, na trajetória de primitivos costumes.

 

Enquanto aí estive, Romany tentou ensinar-me algumas palavras da língua o Tupi. Era bem vinda à aldeia Tapirapé.  Romaní tentou ser meu amigo e assim o conseguiu. Mostrou-me seus desenhos a lápis de cor. Neles se distinguiam  traços próprios daquela cultura. Eram besouros, borboletas e o icônico avião da Funai, cujo  símbolo, bem conhecido por sinal, um vistoso cocar de penas de araras, nas cores azul e amarelo. Inconfundível.

 

Se por acaso chegasse alguma autoridade de Brasília, Romaní fazia questão de usar o quepe e o rayban do piloto. Não sei como conseguiu. Na verdade sentia-se ele comandante, do seu pequenino avião de papel. Pelo seu desenho mostrava-se que nem  um chefe, uma pessoa importante. Fizemos amizade. Romaní ensinou-me as trilhas secretas da floresta. Revelou-me preciosos mimos da natureza. De variadas cores, passarinhos e aves maiores. Quanta diversidade! Fazia questão de citar todos os seus nomes. Tamanha empolgação. Seria quase impossível gravar os muitos nomes, principalmente na língua Tapirapé. Flores pequeninas, delicadas orquídeas brancas, inacessíveis, no alto de longos troncos,  maúbas centenárias. Belas imagens. Inesquecível panorma, restaria-me de consolo.

 

Somente o básico. Um fogareiro a gás. Um muflo pesado. Uma caixa de metal com o instrumental que necessitava para o trabalho. Romaní passou a acompanhar-me nos eventos odontológicos. durante a locomoção pela aldeia ele fazia questão de carregar a pesada tralha. Se precisasse de água, lá ia ele pegar.  A mais limpa possível,  num trecho de rio ou distante igarapé, meio escondido entre as árvores. Água boa, dizia ele. Além da função de arrancadora  dentes, também tirava moldes dos desdentados a fim de confeccionar as dentaduras. Eram tantas! Na verdade, o trabalho do dentista seria erradicar, definitivamente, os dentes estragados, extraindo-se os injuriados. Seja de adultos ou de crianças. Sentia pena. Não havia nenhum tipo de prevenção odontológica. Falava-se muito. Vocês devem escovar seus dentes após as refeições... Mas eles comiam a toda hora, quando bem entendessem. Era um coquinho aqui, um pequi ali, enfim, como se diz nessas situações, era o mesmo que tentar encher um saco sem fundo. Procurava ensinar-lhes como se deveria escovar os dentes. Palavras ao vento.

 

A Funai enviara a pedido meu, um lote de caixas com escovas de dentes, em variadas cores.  Todas em tamanho grande! Para minha surpresa, na véspera da partida,  já via algumas dessas espalhadas pelos arredores, nos terreiros das malocas. Serviam apenas para escovar os utensílios domésticos. Se não serviram para seus dentes, pelos menos, para limpar a fuligem das panelas já se mostravam eficientes. Cultura ultrajada. Alimentação introduzida. Açúcar e amidos. Bombons e bolachas. Danos consequentes.

 

Uma tarde, após longa caminhada juntamente com algumas crianças, alcançamos o plateau da montanha próxima. Uma elevação de talvez noventa metros de altura e que sobressaía imponente na vastidão daquela floresta plana. Espíritos do universo Tapirapé ali habitavam. A vista se mostrava fascinante ante os efeitos lúdicos da luz poente. Variações idílicas em torno do verde. Sentia-me realmente preenchida. A interpretar o mundo ao meu redor, aquele pedaço de paraíso, onde os mosquitos e o calor fariam qualquer um desistir. Aliás, desconforto não sentia. Agonia sublimada.

 

Sempre ocupada, os dias rapidamente iam se passando. Com pesar, conferia no calendário de bolso, que o dia da partida estaria próximo. Nostalgia. Numa manhã  formada por nuvens escuras, comecei arrumar a bagagem. Agora bem maior, com os presentes que havia recebido dos índios. Romaní foi avisar-me,  lá na enfermaria,  que o barqueiro, atendendo ao pedido do radio da missão,  já havia chegado.  Romaní parecia triste, e eu também. Eis quê naquele instante final, ressuscitando uma certa mentalidade  catequista – que ainda habitava em mim, sem muito refletir, ofertei-lhe exultante,  uma lata de “Biscoito Maria”.  Foi  aí então, que  caí na desgraça sem volta. A da culpa imediata. Pois, aquele universo orgânico, único, em meio a tantas bananas e tubérculos nutritivos, acabara de ser violado. E por mim!  Entretanto, via num sorriso aberto, e sem restrições de estética, de levar  a mão à boca,  o agradecimento sincero. Encheu-me de satisfação.

 

Romaní correu até a sua maloca. A família o acompanhava. Pronto já retornava, com outro presente: uma pequena e delicada cabaça, decorada com graciosos desenhos geométricos, um motivo Tapirapé, que ele mesmo havia feito. Agradeci emocionada.

 

Visão surrealista – cachorros famintos e galinhas alvoroçadas já brigavam por pedaços crocantes de biscoito. Subitamente, para minha surpresa, sem demonstrar nenhum constrangimento, via quando ele abria a lata de Biscoito Maria e a esvaziou de todo o seu conteúdo. Eu vi Maria sair da lata!  À vistosa lata dourada destinava-se uma outra função: serviria para guardar a sagrada plumagem das aves. De arara, azul e vermelha, também de colhereiro, periquito e outros pássaros raros. Penas e plumagens. Tão especiais, eram como se fossem um caro artigo de joalheria. Eram as joias da floresta que enfeitariam os corpos em rituais sazonais.  Rituais de iniciação, ocasião de nascimentos e, principalmente, cerimoniais fúnebres.

 

Os biscoitos não seriam tão importantes assim. Entendi. Mais uma vez ouvi de Romany o suave, “merci, mademoiselle”. Proporção inversa, ou fruto metabólico do meu ego? Sua vozinha entrou no meu sistema e nunca mais daí saiu. O fantasma do espírito desse tempo, de vez em quando,  ainda em mim se faz presente.

Lembrei-me então de um fato marcante, quando da passagem dos meus anos de adolescência. Foi no ano de 1969. Meu pai comprara o nosso primeiro aparelho de televisão, para que eu e meus irmãos menores pudessem assistir a chegada do homem à Lua. Feito temporal. Importante. Um marco na história da nossa cultura. Responsável por inexoráveis mudanças que vieram a seguir. As guerras ideológicas e o surgimento do universo eletrônico. O mundo realmente  encolheu.  estrambólico e  feioso, assim era o móvel do aparelho de televisão. Tinha o formato de uma caixa grande, sustentado por três finas pernas de madeira roliça no estilo “decô”. Novidade esta que eu e minhas irmãs logo achamos por bem adaptar ao nosso convívio. Assim, o cobrimos com um paninho de crochê, encimado por gatinhos coloridos de porcelana barata. 

 

Culturas autocnes, tão diferentes. Lá na taba contente, via cachorros famintos, brigando por pedaços crocantes de “Biscoito Maria”. Na minha imobilidade, diante desse momento único e sem as conexões temporais necessárias, nem no passado nem no presente, caía eu em desamparo. Despencava no abismo das desproporções culturais. Nas selvas quentes do Tapirapé, em meio a uma tarde chuvosa de final de outubro, levitava.  Em contentamentos. Voei por instante, nas asas transparentes do besouro verde. No Tapirapé, Romaní era um índio que falava francês.

Amália Grimaldi
2013.

 

quarta-feira, 27 de novembro de 2013


Cores em estado puro
 
Uma análise da pintura de Varne Abrahão
Valença Bahia 
 
“Pescaria Noturna” e “Colina Sagrada” são pinturas em acrílico sobre tela, do artista paulista radicado na Bahia, Varne Abrahão, e foram exibidas durante o Salão de Artes Visuais da Bahia – 2011, em Valença.
 
Desobediência à proporção e à perspectiva espacial.   Desconhecimento ou infração propositada?  Diria que não. Parece-me antes entabular uma metáfora de heroísmo pela infração do suporte formal acadêmico na procura do traço elementar. Vejo assim o drama da composição em si - poderosamente estressada.

O cromatismo é invulgar, de certa forma arrogante. Diria penetrar lancinantemente na retina sensível do observador comum, como um clarão súbito, no prenúncio da tormenta. Incomoda e argui. Mas, acima de tudo, consagra.

 Formas e cores interagem entre si. Parece-me vê-lo atacar a tela durante o processo da ação produtiva, como se estivesse possuído. Desenha a figura que vem em mente a todo ritmo e velocidade e, simultaneamente, à medida em que salienta a forma no desenho, consegue fazer dos seus limites um borrão, ou seja, constrói e desconstrói.

 Esconde-se sob o véu da beleza plástica, deixando levemente insinuar o motivo do cromatismo exultante – a narrativa da figura. Ao final, assiste-se a um conflito iminente, entre o desenho e a pintura acabada. O resultado é uma pintura dinâmica, enérgica, gerada do conflito interno do ser. Revela uma necessidade física entre o ser animal e o ser divinal que produz arte. A sustentar o resultado final da composição, quem ditaria a regra? A técnica ou o tema? 

 Nota-se que a sua paleta é apoiada mais na intuição do que na racionalização da proposta pictorial. Um autodidata, Varne,  sem desmerecer contudo esta condição – sua pintura tem o suporte no que intui, e é resultado de um longo aprendizado onde foi corporificado os ensinamentos do seu fazer daí extraído.

Formas e volumes se interpenetram numa pintura de certa forma selvagem. Parece-me retratar a aspereza e a angústia da vida humana.
Despudorado no uso do pigmento puro, distingo nas suas cores uma certa tensão  - característica da sua expressão.

Varne sem dúvida foge ao banal, ao piegas, ao recurso fácil de pinceladas rápidas que atrai compradores ávidos ao prostituído comércio de algumas galerias de arte.
Articula sua visão entre o micro e o macro universo onde generaliza alguns de seus acentos marcantes e próprios. E assim, norteia a sua ótica de pintor. Entretanto, há um certo compromisso com a representação, geralmente paisagística – A igreja do Amparo ao alto da colina e o Rio Una com os seus saveiros coloridos, são os pontos chamativos da paisagem. O artista insinua o real sem contudo descambar para o vulgar, o que o coloca muito bem longe de assim o ser. Nos símbolos paisagísticos, consegue-se ver além do seu simulacro e, contorna este pretenso real reafirmando que tudo isto daria lugar a uma ponderação mais sensível.

E ao capturar-se o imediato sensível, interroga-se o visível nesta sua produção contemporânea. Poderíamos aí especular seus meios através da linguagem plástica – inconfundível. Às vezes o seu expressionismo residual descamba para o abstracionismo volátil. Varne parece-me ainda preso a esta vertente.
No contexto atual do mundo material consumista, a subversão da experiência estética pelo valor monetário não deixa de ser uma cláusula corrompível.  Diria tratar-se do elemento histórico, registro da atualidade. Contaminante para a arte em geral, o que vem motivando uma certa unidade, debandando para a produção em massa.

O capital especulativo altera e distorce a maneira como se deve observar a pintura convencional dos nossos dias. E o artista termina por acompanhar o mimetismo do estilo, a onda do momento ou, a polêmica que poderá causar nos meios. Por vezes gerando uma arte prostituta. Entretanto, a arte vem ganhando uma certa dimensão neste mundo globalizado – unificado, entre aspas - que talvez prometa uma certa experiência espiritual e quiçá uma favorável manipulação por parte de instituições patronais, as quais,  provocam conflitos de interesse entre mercado e artista.
A perda do contexto sempre levanta problemas, assim como os trabalhos de arte são corporificados com significados que dependem do campo específico do conhecimento, seja ele histórico, geográfico ou cultural . Assim, vejamos o público como um corpo, constituído por si só à instancia da percepção e do discurso.  A pintura de Varne neste salão foi um exemplo de coragem.  Sobrevive dignamente no contexto do novo, onde o trabalho de arte colocado frente a frente com outros, em diálogo necessário, possibilita falar um texto mais complexo ou, brilhar numa larga tonal amplitude, mais do que se ele estiver isolado.  

A pintura de Varne é de uma dignidade soberba porque vem das raízes do seu cotidiano frente a frente às aflições humanas e aos conflitos motivadores das renúncias.

 

Assina:  Amália Grimaldi

quarta-feira, 6 de novembro de 2013


 
 
Valença, não é só  isso que se vê

 
           Valença, o dia amanhece. Rufar de tambores. A filarmônica executa dobrados. E o foguetório, longe espouca.  É dia de festa. O palanque na praça ainda encontra-se vazio. Mais tarde, o esperado acontecimento. Pelas ruas tem desfile e banda tocando.

Valença, amontoado de casas, vias empatadas, gente acelerada, a conduzir seus carros, pela estreiteza de ruas e becos, mostram-se sempre ocupados. Dramas e conflitos são evidentes. Homens e mulheres, todos parecem seguir em busca de realizações, de melhorias de vida.

Valença, enfim, chegou o dia do seu aniversário! Dia 10 de novembro. A cidade se prepara. São muitos os argumentos. São muitas as razões. Nas vozes das crianças ouvem-se versos de hinos exaltados. Aprendem elas, desde cedo, a cantar o patriotismo. Justificada razão. Isto é civilidade. Aplaudem os adultos. Contenta-se autoridades. Cheios de brios, lá de cima, num breve pedestal de estátuas, acenam. E o povo, já  acostumado às sarjetas, lá embaixo na rua, atendem à obrigatoriedade, a de se fazer presente no aplauso. Batem palmas. Todos batem palmas.  Valença, apupada, acontecimento espetacular. Mas não é só isso que poderá  descrever Valença.  Aliás, muito já foi dito, sobre a dignidade de seu  povo.  Do passado histórico da cidade, e de homens de vulto que aqui nasceram. E de muitos outros, aqueles que vieram de outras bandas, ilustres cidadãos, doutores e políticos, homens de negócio, os que aqui criaram fama e fortuna.

Aqui estou a falar de um lugar lá fora, altaneiro. Lugar mais além de aplausos e retumbâncias. Falo de Serra Grande, um lugar que à primeira vista, pareceu-me despontar das nuvens, mais perto do céu.  Em atendimento odontológico, tempos atrás, costumava aí chegar pela manhã, no carro, o consultório móvel. O médico e o dentista, significação da melhor intenção da municipalidade na saúde, na pessoa do prefeito de então,  doutor Agenildo Ramalho. Tentava amenizar possíveis dores de dente. Nem sempre possível. Havia limitações. Voltaria na semana seguinte. Avisava.Nem precidavam agradecer, pois essa era a nossa obrigação.

 Serra Grande. Longe das vistas de muitos, lugar esquecido das multidões. Lugar este que muita gente nem sabe que existe. Ou, pelo menos finge, ignora. Viajo por vias tortuosas, asfalto quente. Em balanços de curvas fechadas sei que logo alcançarei a ansiada beleza solar. Entre sombras e luzes, alcançarei a paisagem serrana. Ainda hoje, deixo-me descansar em pensamento, na serenidade das tardes calmas de Serra Grande. Se no inverno, o melhor agasalho seria a morna acolhida. Seu João, na firmeza do  aperto de mão, dava mostra de sinceridade, enquanto Dona Maria, no sorriso, nem precisava falar. “Vamos entrando minha gente!”

Ah, deixa-me cantar esses rios, vasta planície, verde, sempre verde, o ano todo, frescor eterno que alimenta. Ah, e a represa, água contida, deixa-se cantar a infância, banhada de alegrias, lançando o anzol, esperando o peixe. São essas águas, sempre correntes, fluidez  que nos transporta ao mundo dos sonhos e ilusões. Tempos quando, sentados ao alpendre, o compadre e a comadre, a vizinhança reunida,  no conluio que agrega,  a amizade floria. Parece que foi ainda ontem. Mas, cresci. Ontem menina hoje, canto a beleza dessas paragens, serra espetacular.  Serra Grande, um pedaço fértil de Valença. Conheço bem a sua gente. Mulheres, em bordados e plantas graciosas, fazem crescer bondades, nos muitos filhos que pariram e neles a creditar um mundo melhor. Rapazes e moças enviadas à cidade, para estudar e trabalhar. Ser alguém na vida. Esperança de todos. Serra Grande, espraida nas encostas de sua serra, traz nos vales aguados, a fertilidade que o intruso devora  na cobiça e paixões mesquinhas. Seu povo é forte, vence os medos, na força da obstinação, deixa mostrar no trabalho a dignidade do homem no manejo da terra. Cacau, cravo e dendê. Vacas pastando. A manteiga derretida. O leite e o queijo. Ovos cantados,é voz de galinha poedeira. Fartura aí, é festa de todo dia, é produto do esforço suado. São quintais abençoados.  

Ah, deixa-me cantar esse pedaço de terra, pois hoje, a falar desse arrebol, também falo de Valença, tão ampla, mas que não é só de rio e mar. Valença, minha gente,  é tudo isto, e muito mais. O que acabei de aqui cantar, poema de louvor sincero.

 

Amália Grimaldi

 

 

quinta-feira, 29 de agosto de 2013


 

 
Foto: autor; casarão do séc. XVII - Morro de São Paulo, Bahia.2013.


  O que nos leva a galgar a íngreme incerteza desses dias

 
Mas, como me falava ainda outro dia, em significativa mensagem, o meu amigo do Poço da Panela, escritor e poeta (bom de prosa), Pedro de Albuquerque,  pernambucano de sangue nobre:  “tudo o que eu queria, mesmo, neste instante, era estar trepado no terraço de um sobrado, de frente para o mar, bem no alto de um dos casarões do Pelourinho. Quem sabe ali, pelas sagradas Portas do Carmo, sentindo o cheiro de toda a sua gente, arfante e suada. Comer um acarajé, bem crocante – e com muita pimenta! Só para refrescar o estômago. Esmagar, no prazer palatal que tonteia, a delícia de um camarão torrado com a força dos maxilares.

(Ah, aquele camarão! O que veio de brinde; a baiana foi tão generosa!)

 
Ver tudo trepado e espremido, como Gilberto Freyre, a testemunhar os seus morros a parir o Brasil. Falar mal dos Jesuítas para, depois persignar-me, diante do Senhor do Bonfim. E, poder acreditar no eterno, perplexo com o permanente...”

 
A velha cidade que se revela contente. Esta é a minha cidade. Quando estou em Salvador, e tenho oportunidade, e sem outros maiores compromissos,  gasto um bom tempo nas livrarias do centro,  principalmente  nos  sebos da Rua da Misericórdia. Ali, meio que escondidinhos, entre o remanescente barroco de casarões decaídos, e fachadas de vidro e aço inox do modernoso hodierno,  esses antigos alfarrábios estão ali, bem atrás da Rua Chile. Um achado. Envolto no mistério que me atrai.

 
Sair por aí,  a perambular sem destino certo, nutre a alma da gente. Da Rua Chile, em passos largos, logo  alcanço a Misericórdia.  E lá vou eu. Sigo no rastro desses livros raros. O cheiro dos sebos transmite certo mistério, no que encaderna o volume, que a um tempo foi amado (ou odiado), e manuseado a contento. A essência de um tempo e de seus antigos donos,  uma leve  idiossincrasia.

 
Aprecio o cheiro do livro. Se velho, me traz mensagem na lembrança. De alguém, em algum lugar distante. Se novo, viajo nas suas páginas. Mas, acima de tudo, olho e admiro nos livros; alguns o seu próprio peso. Outros, pelo seu desdobramento cultural – no espaço e no tempo. Que nem Dom Quixote, meu velho conhecido companheiro, habitante de uma estante desarrumada, e de onde subtraí algumas folhas, do cavalo Rocinante, obra do grande ilustrador francês, Gustavo Doré. E meu pai, sem a continuidade da sua leitura, irado ficou. Arquei com as consequências e tudo se acabou. Tempos de infância.

 
Pois é, o livro dialoga com outros códigos. Mas, por defasagem, os livros também poderão não ser mais lidos. Decretada a múltipla falência  de seus códigos, logo serão jogados a um canto. É morte certa.

A leitura desse mundo cotidiano,  faz tempo, vem se afastando dos métodos tradicionais fixados pelo livro ortodoxo. São esses, inegavelmente, os tempos da leitura eletrônica. Vejam só, alguns amigos já entraram nessa onda, mas eu, pelo menos por enquanto, ainda não me decidi. Na verdade ainda não caí de amores pelo e-book.  

 
Inegável é a influência da imagem, de cartazes, outdoors, luminosos e letreiros outros, recursos utilizados na propaganda de produtos diversos. É grande a variedade desse material, em placas à beira de estradas. A gente vai por aí viajando e, de repente, temos a nossa atenção captada pelo texto  insurgente. Às vezes é figurativo, sem legenda. Compreensível.  Esteticamente feio, digamos assim, mas  atraente.  Atrai a nossa visão. Questão de pronto reflexo, pois foram construídos em cima dessa estratégia. Inter-relação imediata. Trata-se de uma invasão retiniana, sem dúvida. É de cansar a menina dos meus olhos!  A minha e a sua.  E a de muitos outros.

 
Como dizia Apollinaire, é preciso que a nossa inteligência se habitue a entender sintático-ideogramicamente, ao invés de discursivo analiticamente. Eis aí o processo acelerado das mutações da linguagem da nossa época! Adoro o livro, digo e repito, por ser um gerador de sentimentos. Sem dúvida, trata-se de  um objeto no espaço. Se o livro impõe limites, físicos e formais, também impõe uma leitura de uma lógica, no discurso da própria linguagem.     

Particularmente, vejo o livro como matriz de sensibilidade. Mas, acima de tudo, objeto de linguagem. Por isso cuido bem dos meus. Tenho ciúme deles. De vez em quando faxino as prateleiras da estante e, com carinho, vou tirando a poeira intrusa.   Aprecio cada volume, distintamente. Até sinto o cheiro e a lembrança de algum lugar, a um tempo qualquer. Faço leitura sinestésica. – Eu sinto seu corpo em minhas mãos!

 
Por questões de segurança, quando estou em Salvador, costumo dirigir-me ao  Shopping Center da Barra.  Uma atração à parte,  pois também aí, adoro o insubstituível aroma do café passado na hora, especialidade da pastelaria árabe. Um bom café expresso. Seus grãos de nobre cepa, Rubiácea ou Arábica, reservam o prazer da satisfação volátil. E, sem açúcar!  O ciclamato de sódio termina por matar o deleite de papilas gustativas. E, o meu também.

 
São tantas as lojas! As vitrines, iluminadas e chamativas, são um convite ao pecado! Sábia, pelo menos em matéria de discernir, o desejado do não necessário, aprendi com o tempo a não sucumbir à vil tentação dos modismos. Mas,  tem um detalhe, eu só uso, de preferência, roupa sob medida. Simplesmente me dou ao luxo de ter uma modista ao meu dispor. Mestra no que faz,  ela é uma senhora cajaibana, costureira de nome em Valença, por isto muito requisitada. Carinhosamente chamada de Nini, uma profissional de talento. E como ela sabe medir! E cortar bem! E costurar!  Como ninguém mais. Costumo dizer: que tesoura de ouro! E não é só para agradar. Ela é mesmo preciosa! Pelo menos para mim.

 
Mas, nada como andar ao ar livre, permitindo que venha o inusitado acontecimento, somente para renovar o sedimento cansado de acontecimentos passados. Para mim, a moderna atmosfera de lugares confinados, costuma ter um cheiro plástico, inorgânico. Talvez devido ao ar condicionado central, o que para mim, às vezes, se torna sufocante, principalmente se não tenho a intenção de fazer compras.

 
Mas, cadê a bandeira?! Me convenci, definitivamente, que já expulsaram os holandeses daqui. Lembrei-me do meu caro amigo pernambucano, Pedro de Albuquerque. É que já sentia falta da representação consular holandesa, bem ali, no topo da ladeira. Sinal dos tempos.  Eles já não se encontram mais no largo do Carmo! O belo casarão colonial ibérico a mostrar suas portas escancaradas, de onde já via passar alguns carregadores, suados trabalhadores da construção civil  com os carrinhos de mão cheinhos de debris. Provavelmente pertenceria este notável casarão  a outro dono, visto que  já passava por uma densa reforma.

 
Aliás, estas ruas do Centro Histórico de Salvador, atualmente,  já não são tão seguras, principalmente para se transitar às escuras. Percebi no que residia ali, bem defronte ao Convento do Carmo,  o vulgar banal desses dias –a presença ostensiva de um policial armado. À sombra da tarde de um velho muro, via-se mudo. Em seu ofício de olhar e zelar por outros, indiferente,  por não mais ter o que fazer, assim passava seu tempo, a brincar com os próprios dedos. A conversar consigo mesmo.

 
Subir e descer o Pelourinho, por aquelas íngremes ladeiras, calçadas de pedra redonda, e sem medo de escorregão, é  galgar a íngreme certeza de que –, Deus, é mesmo brasileiro!

 
É na aragem fresca das tardes de Salvador, sentindo o sopro úmido da sua baía azul, que penso estar mais perto do céu. Ao lado de seus anjos barrocos, negros baianos– descendentes de alforriados contentes- e dos não legitimados, fruto de paixões exacerbadas ('petra scandalis'), que os jesuítas caolhos ignoraram -  bastardos morenos tupinambás, gerados por cunhatãs, escolhidas, ao leito do português Diogo Álvares, escondido nos arrecifes de 'Maiririguig', na embocadura do Rio Vermelho.    Sinto no ar toda a organicidade de Salvador, lama de seus becos recônditos, chão de patife, às vezes palco de afogados, daqueles desesperados, a boiar em águas de pensamento raso. Tudo de bom e de ruim aqui convive, lado a lado. E é nessa convicção que se pode alcançar a graça dos cinco mistérios gozosos ou, a reencarnação do santo preferido. Um estado de graça. É tudo isto  o que nos leva a galgar no prazer a íngreme incerteza desses nossos dias.

(“Nada mudou por aqui”– Amália Grimaldi)

 
 
 

quinta-feira, 8 de agosto de 2013










Terra de cristal – Arte e Literatura – Narrativa associativa

 Mês de junho de 2011. De férias pela Europa, tive a oportunidade de visitar alguns museus e galerias de arte– Suíça e Portugal – pois estavam no meu roteiro. Assisti ao que há de mais contemporâneo em matéria de arte no mundo atual. Pinceladas de saudosismo se faz presente nesse contexto um tanto conturbado de massas urbanas pelo mundo a fora gerando uma certa mensagem apocalíptica, em algumas interpretações. O fim do mundo estaria próximo? Um certo atavismo? Seria o fim de si mesmo, do homem pensante – a tábula-rasa. Abertas interpretações ao espectador.

Textos dão completude à mostra de artes plásticas e retrata dessa forma a nudez do artista. De certa maneira sua autobiografia em três dimensões.

Escultura, instalação, pintura, vídeo em performance baseada em pedaços de textos com larga visão cultural e referências históricas.

Presenciei a mais compreensiva exibição dos trabalhos da artista Mai-Thu Perret que ora reside na cidade de Geneva  na Suiça.

“ The Adding Machine” em exibição no Museu de Aargau – Suíça, onde tive a grata satisfação de apreciar a utilização da contoversial técnica do “Cut up” do escritor norte americano William S. Burroughs que costumava cortar páginas de seus manuscritos e o subsequente rearranjo dos pedaços escritos de maneira alheatória. O que foi de certa maneira utilizada na apresentação dos trabalhos dessa artista. O resultado foi uma impressiva narrativa associativa. Justaposições que abrem novas referências cruzadas e significados entre trabalhos individuais.

Havia ainda uma relação dos trabalhos com um texto base escrito pela artista através de anos de experiência. O assunto do texto dizia sobre a utópica narrativa comum de mulheres que vivem no deserto do Novo México em ordem de escape à social estrutura patriarcal capitalista. A história oferece uma grande inspiração temática para o trabalho artístico. The Crystal Frontier é parte desse texto apresentado que se inclui no livro por ela escrito e intitulado “ Land of Crystal”(Terra de Cristal).

 

Amália Grimaldi

 
Escritora e Artista Plástica

 

Lisboa festeja Antônio


 
 
 


 
            Fernando Elevado ao Quadrado

Desembarquei em Lisboa no dia de Santo Antônio - feriado em Portugal. Pelos subúrbios dançava-se a “roda” o que chamamos aqui de quadrilha. Muito colorido, música e comida típica associada aos vinhos locais. Da sacada do hotel pude observar o vai-e-vem frenético das pessoas à rua. Muita alegria no ar. É sempre uma grande satisfação respirar o ar lisboeta e principalmente comer suas sardinhas na brasa. Fui andando pelas ruas antigas antes visitadas-ainda a mesma emoção- o Bairro Alto - descendo ao Chiado num plano inclinado cheio de turistas barulhentos. A poucos passos dali fui dar a Casa Fernando Pessoa, um museu que é paragem obrigatória para aqueles cultuadores da língua portuguesa. Mergulhei aí nesse universo por muitas horas.

“A pátria é a língua portuguesa” - Assim ficou célebre a frase deste escritor português. A obra gigantesca de Fernando Pessoa foi traduzida em mais de trinta línguas pelo mundo. Na verdade a gente sempre descobre um algo mais toda vez que lemos os poemas do nosso agrado – “Tudo vale a pena se a alma não é pequena”.

         No dia de Santo Antônio, 13 de junho de 1888, nascia Fernando Antônio Nogueira Pessoa, no bairro onde hoje tem a sua estátua, no Largo de São Carlos. Vida intensamente vivida, se bem que um tanto curta, pois veio a falecer em 1935 aos quarenta e sete anos de idade.

Fernando Pessoa e Fernando de Bulhões. O que têm eles em comum? Bem, ambos nasceram na cidade de Lisboa. Em épocas distintas. Sendo pessoas igualmente idolatradas pelos portugueses. O primeiro, conhecido e declamado poeta, e o segundo, cujo nome não bate na memória da gente, é o verdadeiro nome de Santo Antônio. Fernando de Bulhões, nome de batismo do santo franciscano, antes aluno do Seminário de Coimbra. Conta a história que viajando ao Marrocos sob uma tremenda tempestade a embarcação do religioso desviou-se a Pádua na Itália. Aí, nesta cidade, veio a falecer em 13 de junho de 1231. Um ano mais tarde veio a ser canonizado – Santo Antônio. Apesar de ter nascido em Lisboa não é entretanto o seu padroeiro mas sim São Vicente. Mas, a adoração popular é tão grande, que o santo é tratado como se assim o fosse.

Portugal é uma aventura e mexe com a nossa imaginação. Janelas medievais, roupas a secar nas sacadas, cortina rendada nos vitrais. A gente vê aí a grata presença dos casarões da nossa cidade do Salvador e suas luzes parecem se acender à nossa passagem. Estar em Portugal é estar em casa. Voltarei sempre, oportunamente.

Amália Grimaldi – Escritora e Artista Plástica