quarta-feira, 27 de novembro de 2013


Cores em estado puro
 
Uma análise da pintura de Varne Abrahão
Valença Bahia 
 
“Pescaria Noturna” e “Colina Sagrada” são pinturas em acrílico sobre tela, do artista paulista radicado na Bahia, Varne Abrahão, e foram exibidas durante o Salão de Artes Visuais da Bahia – 2011, em Valença.
 
Desobediência à proporção e à perspectiva espacial.   Desconhecimento ou infração propositada?  Diria que não. Parece-me antes entabular uma metáfora de heroísmo pela infração do suporte formal acadêmico na procura do traço elementar. Vejo assim o drama da composição em si - poderosamente estressada.

O cromatismo é invulgar, de certa forma arrogante. Diria penetrar lancinantemente na retina sensível do observador comum, como um clarão súbito, no prenúncio da tormenta. Incomoda e argui. Mas, acima de tudo, consagra.

 Formas e cores interagem entre si. Parece-me vê-lo atacar a tela durante o processo da ação produtiva, como se estivesse possuído. Desenha a figura que vem em mente a todo ritmo e velocidade e, simultaneamente, à medida em que salienta a forma no desenho, consegue fazer dos seus limites um borrão, ou seja, constrói e desconstrói.

 Esconde-se sob o véu da beleza plástica, deixando levemente insinuar o motivo do cromatismo exultante – a narrativa da figura. Ao final, assiste-se a um conflito iminente, entre o desenho e a pintura acabada. O resultado é uma pintura dinâmica, enérgica, gerada do conflito interno do ser. Revela uma necessidade física entre o ser animal e o ser divinal que produz arte. A sustentar o resultado final da composição, quem ditaria a regra? A técnica ou o tema? 

 Nota-se que a sua paleta é apoiada mais na intuição do que na racionalização da proposta pictorial. Um autodidata, Varne,  sem desmerecer contudo esta condição – sua pintura tem o suporte no que intui, e é resultado de um longo aprendizado onde foi corporificado os ensinamentos do seu fazer daí extraído.

Formas e volumes se interpenetram numa pintura de certa forma selvagem. Parece-me retratar a aspereza e a angústia da vida humana.
Despudorado no uso do pigmento puro, distingo nas suas cores uma certa tensão  - característica da sua expressão.

Varne sem dúvida foge ao banal, ao piegas, ao recurso fácil de pinceladas rápidas que atrai compradores ávidos ao prostituído comércio de algumas galerias de arte.
Articula sua visão entre o micro e o macro universo onde generaliza alguns de seus acentos marcantes e próprios. E assim, norteia a sua ótica de pintor. Entretanto, há um certo compromisso com a representação, geralmente paisagística – A igreja do Amparo ao alto da colina e o Rio Una com os seus saveiros coloridos, são os pontos chamativos da paisagem. O artista insinua o real sem contudo descambar para o vulgar, o que o coloca muito bem longe de assim o ser. Nos símbolos paisagísticos, consegue-se ver além do seu simulacro e, contorna este pretenso real reafirmando que tudo isto daria lugar a uma ponderação mais sensível.

E ao capturar-se o imediato sensível, interroga-se o visível nesta sua produção contemporânea. Poderíamos aí especular seus meios através da linguagem plástica – inconfundível. Às vezes o seu expressionismo residual descamba para o abstracionismo volátil. Varne parece-me ainda preso a esta vertente.
No contexto atual do mundo material consumista, a subversão da experiência estética pelo valor monetário não deixa de ser uma cláusula corrompível.  Diria tratar-se do elemento histórico, registro da atualidade. Contaminante para a arte em geral, o que vem motivando uma certa unidade, debandando para a produção em massa.

O capital especulativo altera e distorce a maneira como se deve observar a pintura convencional dos nossos dias. E o artista termina por acompanhar o mimetismo do estilo, a onda do momento ou, a polêmica que poderá causar nos meios. Por vezes gerando uma arte prostituta. Entretanto, a arte vem ganhando uma certa dimensão neste mundo globalizado – unificado, entre aspas - que talvez prometa uma certa experiência espiritual e quiçá uma favorável manipulação por parte de instituições patronais, as quais,  provocam conflitos de interesse entre mercado e artista.
A perda do contexto sempre levanta problemas, assim como os trabalhos de arte são corporificados com significados que dependem do campo específico do conhecimento, seja ele histórico, geográfico ou cultural . Assim, vejamos o público como um corpo, constituído por si só à instancia da percepção e do discurso.  A pintura de Varne neste salão foi um exemplo de coragem.  Sobrevive dignamente no contexto do novo, onde o trabalho de arte colocado frente a frente com outros, em diálogo necessário, possibilita falar um texto mais complexo ou, brilhar numa larga tonal amplitude, mais do que se ele estiver isolado.  

A pintura de Varne é de uma dignidade soberba porque vem das raízes do seu cotidiano frente a frente às aflições humanas e aos conflitos motivadores das renúncias.

 

Assina:  Amália Grimaldi

quarta-feira, 6 de novembro de 2013


 
 
Valença, não é só  isso que se vê

 
           Valença, o dia amanhece. Rufar de tambores. A filarmônica executa dobrados. E o foguetório, longe espouca.  É dia de festa. O palanque na praça ainda encontra-se vazio. Mais tarde, o esperado acontecimento. Pelas ruas tem desfile e banda tocando.

Valença, amontoado de casas, vias empatadas, gente acelerada, a conduzir seus carros, pela estreiteza de ruas e becos, mostram-se sempre ocupados. Dramas e conflitos são evidentes. Homens e mulheres, todos parecem seguir em busca de realizações, de melhorias de vida.

Valença, enfim, chegou o dia do seu aniversário! Dia 10 de novembro. A cidade se prepara. São muitos os argumentos. São muitas as razões. Nas vozes das crianças ouvem-se versos de hinos exaltados. Aprendem elas, desde cedo, a cantar o patriotismo. Justificada razão. Isto é civilidade. Aplaudem os adultos. Contenta-se autoridades. Cheios de brios, lá de cima, num breve pedestal de estátuas, acenam. E o povo, já  acostumado às sarjetas, lá embaixo na rua, atendem à obrigatoriedade, a de se fazer presente no aplauso. Batem palmas. Todos batem palmas.  Valença, apupada, acontecimento espetacular. Mas não é só isso que poderá  descrever Valença.  Aliás, muito já foi dito, sobre a dignidade de seu  povo.  Do passado histórico da cidade, e de homens de vulto que aqui nasceram. E de muitos outros, aqueles que vieram de outras bandas, ilustres cidadãos, doutores e políticos, homens de negócio, os que aqui criaram fama e fortuna.

Aqui estou a falar de um lugar lá fora, altaneiro. Lugar mais além de aplausos e retumbâncias. Falo de Serra Grande, um lugar que à primeira vista, pareceu-me despontar das nuvens, mais perto do céu.  Em atendimento odontológico, tempos atrás, costumava aí chegar pela manhã, no carro, o consultório móvel. O médico e o dentista, significação da melhor intenção da municipalidade na saúde, na pessoa do prefeito de então,  doutor Agenildo Ramalho. Tentava amenizar possíveis dores de dente. Nem sempre possível. Havia limitações. Voltaria na semana seguinte. Avisava.Nem precidavam agradecer, pois essa era a nossa obrigação.

 Serra Grande. Longe das vistas de muitos, lugar esquecido das multidões. Lugar este que muita gente nem sabe que existe. Ou, pelo menos finge, ignora. Viajo por vias tortuosas, asfalto quente. Em balanços de curvas fechadas sei que logo alcançarei a ansiada beleza solar. Entre sombras e luzes, alcançarei a paisagem serrana. Ainda hoje, deixo-me descansar em pensamento, na serenidade das tardes calmas de Serra Grande. Se no inverno, o melhor agasalho seria a morna acolhida. Seu João, na firmeza do  aperto de mão, dava mostra de sinceridade, enquanto Dona Maria, no sorriso, nem precisava falar. “Vamos entrando minha gente!”

Ah, deixa-me cantar esses rios, vasta planície, verde, sempre verde, o ano todo, frescor eterno que alimenta. Ah, e a represa, água contida, deixa-se cantar a infância, banhada de alegrias, lançando o anzol, esperando o peixe. São essas águas, sempre correntes, fluidez  que nos transporta ao mundo dos sonhos e ilusões. Tempos quando, sentados ao alpendre, o compadre e a comadre, a vizinhança reunida,  no conluio que agrega,  a amizade floria. Parece que foi ainda ontem. Mas, cresci. Ontem menina hoje, canto a beleza dessas paragens, serra espetacular.  Serra Grande, um pedaço fértil de Valença. Conheço bem a sua gente. Mulheres, em bordados e plantas graciosas, fazem crescer bondades, nos muitos filhos que pariram e neles a creditar um mundo melhor. Rapazes e moças enviadas à cidade, para estudar e trabalhar. Ser alguém na vida. Esperança de todos. Serra Grande, espraida nas encostas de sua serra, traz nos vales aguados, a fertilidade que o intruso devora  na cobiça e paixões mesquinhas. Seu povo é forte, vence os medos, na força da obstinação, deixa mostrar no trabalho a dignidade do homem no manejo da terra. Cacau, cravo e dendê. Vacas pastando. A manteiga derretida. O leite e o queijo. Ovos cantados,é voz de galinha poedeira. Fartura aí, é festa de todo dia, é produto do esforço suado. São quintais abençoados.  

Ah, deixa-me cantar esse pedaço de terra, pois hoje, a falar desse arrebol, também falo de Valença, tão ampla, mas que não é só de rio e mar. Valença, minha gente,  é tudo isto, e muito mais. O que acabei de aqui cantar, poema de louvor sincero.

 

Amália Grimaldi