Valença
de todos os meus dias
(Amália Grimaldi, “Nada mudou por aqui”)
Valença, paisagem e pessoas. Tramas e
urdiduras, divisões e contradições. Rio Una, divisor de águas, o antes e o
depois. Nesta cidade de pleno sol, de ruas e becos estreitos, de colinas e
ladeiras, de visões surpreendentes, de barcos e de saveiros, de partidas e de
chegadas, e porque não dizer, Valença é terra de simpatia, de portas abertas ao
imigrante na cordialidade de seu povo.
Valença, perfumada, a cravo e canela. Valença,
é grato regresso de viagem. Cheiro de baunilha faz alegria de assentamento oportuno;
janela para o nascente, de preferência no quarto da frente – cordialidade familiar.
Modesta toalha branca, barrado de crochê, ritual de mesa farta. Diletantismo
honesto. Às vezes, no velho bule craquelado, de fina porcelana que ainda se
apresenta, vê-se resquício de senso de nobreza, de outrora lusitana confiança
guardada. Testemunho do tempo colonial.
No café recém-coado, satisfação imediata, no
olfato contente. São cumplicidades afetivas em volta da mesa posta por mãos tão
carinhosas. Receitas de ontem ainda alegrando o paladar de hoje, em mil- modos
de preparo, mais um dos muitos mimos, valiosa herança que não se perdeu no
tempo. O legado cultural da cozinha da vovó, persiste, insiste, na cultura do
azeite de dendê, no peixe de todos os nossos dias. Alma, sabor e cor, de um
povo, alegre por essência.
Valença, terra de amigos, de compadres e de comadres,
de gente que ainda se abraça, seja na rua ou no supermercado, independente de
credo ou língua, o aceno, o sorriso, ainda se faz por merecer.
Ah, lá está o mar distante! A vista do
Amparo, a igrejinha do Galeão ao longe se destaca. A Falésia do Morro, cores
fascinantes, grata visão ao por do sol. Fascinante delta azul, onde o velho Una
alcança o azul Atlântico. Paisagem de todos, e por que não dizer, um pouco
minha também. Divido-a com todos os santos. Tempos de novenas bem-vindas. Festa
de gente que não perde a esperança no futuro, todos reunidos em torno da fé na
vida. Aspergir de águas e bênçãos
esperadas.
Passemos uma rápida vista no que melhor se
vislumbra, livro aberto, narrativa de sua história, a Igreja da Matriz, suas
escadarias testemunham virtudes e pecados, ambiguidade, religiosidade e
profanação. Festa do padroeiro, a roupa nova – competição no olhar. Apenas
humanidades.
A Estância Azul, privilégio de um tempo
admirado, guarda testemunho burguês, de era colonial. Hoje, preservação oportuna,
memória das pessoas queridas que se distinguiram em Valença, como o Doutor
Heitor Guedes de Mello, médico devotado, que aí viveu com a sua família.
Estaleiro de Valença, grandes embarcações,
preciosidades artesanais, trabalhadas no valioso conhecimento, de pai para
filho. O estaleiro valorizou famílias e clãs, no ângulo acertado, sem erros,
medido pela sabedoria do graminho. Com orgulho, alcançaram seus rebentos, mares
distantes, os caminhos da esquadra de Cabral.
A Recreativa, opulência de uma época. Belo
casarão colonial, marco da era têxtil, onde retretas dançantes aí se
realizavam, hoje elemento de composição, distinguível com saudosismo, na hodierna
paisagem dramática do movimentado cais
do porto.
O apito da Companhia Valença Industrial, se
extinguiu com o tempo, mas ainda é motivo de orgulho para o trabalhador
valenciano, que com este despertou, no manter de suas famílias.
Existiria
melhor conceito híbrido a sustentar essa sinestésica passagem de tempo e que
deixaria seu residual pastoso em mim, senão a passagem do próprio tempo?
Samuel Mascate, seus ouros e suas pratas. À
porta, eram disparates jogados à cara. Seus dinheiros devidos. Prata e panos de
outros dias. Aqui, Libanês é chamado de
Turco. Rastro ficou na trama, intricado tecido social, mostrado em suas belas estampas
orientais, nobre seda da Rua Direita.
O nosso querido Doutor Mustafá Rosenberg de
Souza, digno cidadão valenciano, com seus belos versos rimados, que nos
presenteia semanalmente, é nobre testemunha de acontecimentos que formaram a
identidade e genealogia dessa gente valenciana, no libanês chamado turco, seu pai, que de
muito longe aqui aportou, e se amalgamou. No sangue e na alma. Na Medicina e na
Poesia.
Valença, ação do tempo, degradação e
renovação. Terra de fartura e contradições. A mata, o rio e o mar. Privilégios
da natureza ainda visíveis, no contexto urbano e rural.
Valença, ilustres cidadãos pariu, gerações
que vão passando conservam seus princípios, inventário de grande valor.
Valença, amálgama de culturas, herança de
antepassados, berço de meus avós maternos, amo esta terra!
Valença, presença poderosa
no que compreende, mas humilde no que se vislumbra, à sombra de seus conflitos,
que são universais, nesse mundo contemporâneo, de verdades virtuais
globalizadas, seus batuques e cantorias podem ser de falas perdidas, mas nunca serão
caducas.
Valença, coluna de sustentação, fez alegria
de muitos como eu, onde se estivera quando em criança, na acolhedora Casa da
Rua do Cais do Porto. Eu e elas, e a fragilidade tentadora de nossos biscoitos
amanteigados. As meninas, amigas de
infância, da Casa Amarela e do Casarão Azul, seriam hoje avós, assim que nem eu.
Quanto às outras meninas, nunca mais as vi, mas ainda sinto o cheiro bom, das
mangas do seu quintal.
Valença, é aquela senhora, que de vez
em quando desperta em mim, no que fora antes. Ainda vive em mim. Durmo nesse solo de fértil quintal, para
acordar sã, na lucidez dos conflitos do tempo presente.
Valença, é chão abençoado, berçário do
mito que se fez racional, pois ainda guarda a chave de promessas ao retorno.
Certeza de todos os meus dias.
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