quarta-feira, 7 de agosto de 2013


Valença de todos os meus dias

(Amália Grimaldi, “Nada mudou por aqui”)

 

Valença, paisagem e pessoas. Tramas e urdiduras, divisões e contradições. Rio Una, divisor de águas, o antes e o depois. Nesta cidade de pleno sol, de ruas e becos estreitos, de colinas e ladeiras, de visões surpreendentes, de barcos e de saveiros, de partidas e de chegadas, e porque não dizer, Valença é terra de simpatia, de portas abertas ao imigrante na cordialidade de seu povo.

Valença, perfumada, a cravo e canela. Valença, é grato regresso de viagem. Cheiro de baunilha faz alegria de assentamento oportuno; janela para o nascente, de preferência no quarto da frente – cordialidade familiar. Modesta toalha branca, barrado de crochê, ritual de mesa farta. Diletantismo honesto. Às vezes, no velho bule craquelado, de fina porcelana que ainda se apresenta, vê-se resquício de senso de nobreza, de outrora lusitana confiança guardada. Testemunho do tempo colonial.

No café recém-coado, satisfação imediata, no olfato contente. São cumplicidades afetivas em volta da mesa posta por mãos tão carinhosas. Receitas de ontem ainda alegrando o paladar de hoje, em mil- modos de preparo, mais um dos muitos mimos, valiosa herança que não se perdeu no tempo. O legado cultural da cozinha da vovó, persiste, insiste, na cultura do azeite de dendê, no peixe de todos os nossos dias. Alma, sabor e cor, de um povo, alegre por essência.

Valença, terra de amigos, de compadres e de comadres, de gente que ainda se abraça, seja na rua ou no supermercado, independente de credo ou língua, o aceno, o sorriso, ainda se faz por merecer.

Ah, lá está o mar distante! A vista do Amparo, a igrejinha do Galeão ao longe se destaca. A Falésia do Morro, cores fascinantes, grata visão ao por do sol.  Fascinante delta azul, onde o velho Una alcança o azul Atlântico. Paisagem de todos, e por que não dizer, um pouco minha também. Divido-a com todos os santos. Tempos de novenas bem-vindas. Festa de gente que não perde a esperança no futuro, todos reunidos em torno da fé na vida.  Aspergir de águas e bênçãos esperadas.

Passemos uma rápida vista no que melhor se vislumbra, livro aberto, narrativa de sua história, a Igreja da Matriz, suas escadarias testemunham virtudes e pecados, ambiguidade, religiosidade e profanação. Festa do padroeiro, a roupa nova – competição no olhar. Apenas humanidades.

A Estância Azul, privilégio de um tempo admirado, guarda testemunho burguês, de era colonial. Hoje, preservação oportuna, memória das pessoas queridas que se distinguiram em Valença, como o Doutor Heitor Guedes de Mello, médico devotado, que aí viveu com a sua família.

Estaleiro de Valença, grandes embarcações, preciosidades artesanais, trabalhadas no valioso conhecimento, de pai para filho. O estaleiro valorizou famílias e clãs, no ângulo acertado, sem erros, medido pela sabedoria do graminho. Com orgulho, alcançaram seus rebentos, mares distantes, os caminhos da esquadra de Cabral.

A Recreativa, opulência de uma época. Belo casarão colonial, marco da era têxtil, onde retretas dançantes aí se realizavam, hoje elemento de composição, distinguível com saudosismo, na hodierna paisagem dramática  do movimentado cais do porto.

O apito da Companhia Valença Industrial, se extinguiu com o tempo, mas ainda é motivo de orgulho para o trabalhador valenciano, que com este despertou, no manter de suas famílias.

 Existiria melhor conceito híbrido a sustentar essa sinestésica passagem de tempo e que deixaria seu residual pastoso em mim, senão a passagem do próprio tempo?

Samuel Mascate, seus ouros e suas pratas. À porta, eram disparates jogados à cara. Seus dinheiros devidos. Prata e panos de outros dias.  Aqui, Libanês é chamado de Turco. Rastro ficou na trama, intricado tecido social, mostrado em suas belas estampas orientais, nobre seda da Rua Direita.

O nosso querido Doutor Mustafá Rosenberg de Souza, digno cidadão valenciano, com seus belos versos rimados, que nos presenteia semanalmente, é nobre testemunha de acontecimentos que formaram a identidade e genealogia dessa gente valenciana,  no libanês chamado turco, seu pai, que de muito longe aqui aportou, e se amalgamou. No sangue e na alma. Na Medicina e na Poesia.

Valença, ação do tempo, degradação e renovação. Terra de fartura e contradições. A mata, o rio e o mar. Privilégios da natureza ainda visíveis, no contexto urbano e rural.

Valença, ilustres cidadãos pariu, gerações que vão passando conservam seus princípios, inventário de grande valor.

Valença, amálgama de culturas, herança de antepassados, berço de meus avós maternos, amo esta terra!

Valença, presença poderosa no que compreende, mas humilde no que se vislumbra, à sombra de seus conflitos, que são universais, nesse mundo contemporâneo, de verdades virtuais globalizadas, seus batuques e cantorias podem ser de falas perdidas, mas nunca serão caducas.

Valença, coluna de sustentação, fez alegria de muitos como eu, onde se estivera quando em criança, na acolhedora Casa da Rua do Cais do Porto. Eu e elas, e a fragilidade tentadora de nossos biscoitos amanteigados.  As meninas, amigas de infância, da Casa Amarela e do Casarão Azul, seriam hoje avós, assim que nem eu. Quanto às outras meninas, nunca mais as vi, mas ainda sinto o cheiro bom, das mangas do seu quintal.

Valença, é aquela senhora, que de vez em quando desperta em mim, no que fora antes. Ainda vive em mim.  Durmo nesse solo de fértil quintal, para acordar sã, na lucidez dos conflitos do tempo presente.

Valença, é chão abençoado, berçário do mito que se fez racional, pois ainda guarda a chave de promessas ao retorno. Certeza de todos os meus dias.

 

 

 

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