O que nos leva a galgar a íngreme incerteza desses dias
Mas, como me falava ainda outro dia, em
significativa mensagem, o meu amigo do Poço da Panela, escritor e poeta (bom de
prosa), Pedro de Albuquerque, pernambucano de sangue nobre: “tudo o
que eu queria, mesmo, neste instante, era estar trepado no terraço de um
sobrado, de frente para o mar, bem no alto de um dos casarões do Pelourinho.
Quem sabe ali, pelas sagradas Portas do Carmo, sentindo o cheiro de toda a sua
gente, arfante e suada. Comer um acarajé, bem crocante – e com muita pimenta!
Só para refrescar o estômago. Esmagar, no prazer palatal que tonteia, a delícia
de um camarão torrado com a força dos maxilares.
Ver tudo trepado e espremido, como Gilberto
Freyre, a testemunhar os seus morros a parir o Brasil. Falar mal dos Jesuítas
para, depois persignar-me, diante do Senhor do Bonfim. E, poder acreditar no
eterno, perplexo com o permanente...”
A velha cidade que se revela contente. Esta
é a minha cidade. Quando estou em Salvador, e tenho oportunidade, e sem outros
maiores compromissos, gasto um bom tempo nas livrarias do centro,
principalmente nos sebos da Rua da Misericórdia. Ali,
meio que escondidinhos, entre o remanescente barroco de casarões decaídos, e
fachadas de vidro e aço inox do modernoso hodierno, esses antigos alfarrábios estão ali, bem atrás
da Rua Chile. Um achado. Envolto no mistério que me atrai.
Sair por aí, a perambular sem destino
certo, nutre a alma da gente. Da Rua Chile, em passos
largos, logo alcanço a Misericórdia. E lá vou eu. Sigo no
rastro desses livros raros. O cheiro dos sebos transmite certo mistério,
no que encaderna o volume, que a um tempo foi amado (ou
odiado), e manuseado a contento. A essência de um tempo e de
seus antigos donos, uma leve idiossincrasia.
Aprecio o cheiro do livro. Se velho, me traz
mensagem na lembrança. De alguém, em algum lugar distante. Se novo, viajo nas
suas páginas. Mas, acima de tudo, olho e admiro nos livros; alguns o seu
próprio peso. Outros, pelo seu desdobramento cultural – no espaço e no tempo.
Que nem Dom Quixote, meu velho conhecido companheiro, habitante de
uma estante desarrumada, e de onde subtraí algumas folhas, do
cavalo Rocinante, obra do grande ilustrador francês, Gustavo
Doré. E meu pai, sem a continuidade da sua leitura, irado ficou. Arquei com as
consequências e tudo se acabou. Tempos de infância.
Pois é, o livro dialoga com outros códigos.
Mas, por defasagem, os livros também poderão não ser mais lidos. Decretada a
múltipla falência de seus códigos, logo serão jogados a um canto. É morte
certa.
Inegável é a influência da imagem, de
cartazes, outdoors, luminosos e letreiros outros, recursos utilizados na
propaganda de produtos diversos. É grande a variedade desse material, em placas
à beira de estradas. A gente vai por aí viajando e, de repente, temos a
nossa atenção captada pelo texto insurgente. Às vezes é figurativo,
sem legenda. Compreensível. Esteticamente feio, digamos assim, mas
atraente. Atrai a nossa visão. Questão de pronto reflexo, pois foram
construídos em cima dessa estratégia. Inter-relação imediata. Trata-se de uma
invasão retiniana, sem dúvida. É de cansar a menina dos meus olhos!
A minha e a sua. E a de muitos outros.
Como dizia Apollinaire, é preciso que a nossa
inteligência se habitue a entender sintático-ideogramicamente, ao invés de
discursivo analiticamente. Eis aí o processo acelerado das mutações da
linguagem da nossa época! Adoro o livro, digo e repito, por ser um gerador de
sentimentos. Sem dúvida, trata-se de um objeto no espaço. Se o livro
impõe limites, físicos e formais, também impõe uma leitura de uma lógica, no
discurso da própria linguagem.
Por questões de segurança, quando estou em
Salvador, costumo dirigir-me ao Shopping Center da Barra. Uma
atração à parte, pois também aí, adoro o insubstituível aroma do café
passado na hora, especialidade da pastelaria árabe. Um bom café expresso. Seus
grãos de nobre cepa, Rubiácea ou Arábica, reservam o prazer da satisfação
volátil. E, sem açúcar! O ciclamato de sódio termina por matar o deleite
de papilas gustativas. E, o meu também.
São tantas as lojas! As vitrines, iluminadas
e chamativas, são um convite ao pecado! Sábia, pelo menos em matéria de
discernir, o desejado do não necessário, aprendi com o tempo a não sucumbir à
vil tentação dos modismos. Mas, tem um detalhe, eu só uso, de
preferência, roupa sob medida. Simplesmente me dou ao luxo de ter uma modista
ao meu dispor. Mestra no que faz, ela é uma senhora cajaibana,
costureira de nome em Valença, por isto muito requisitada. Carinhosamente
chamada de Nini, uma profissional de talento. E como ela sabe
medir! E cortar bem! E costurar! Como ninguém mais. Costumo dizer:
que tesoura de ouro! E não é só para agradar. Ela é mesmo preciosa! Pelo menos
para mim.
Mas, nada como andar ao ar livre, permitindo
que venha o inusitado acontecimento, somente para renovar o sedimento cansado
de acontecimentos passados. Para mim, a moderna atmosfera de lugares confinados,
costuma ter um cheiro plástico, inorgânico. Talvez devido ao ar condicionado
central, o que para mim, às vezes, se torna sufocante, principalmente se não
tenho a intenção de fazer compras.
Mas, cadê a bandeira?! Me convenci,
definitivamente, que já expulsaram os holandeses daqui. Lembrei-me do meu caro
amigo pernambucano, Pedro de Albuquerque. É que já sentia falta da
representação consular holandesa, bem ali, no topo da ladeira. Sinal dos tempos.
Eles já não se encontram mais no largo do Carmo! O belo casarão colonial
ibérico a mostrar suas portas escancaradas, de onde já via passar alguns
carregadores, suados trabalhadores da construção civil com os carrinhos
de mão cheinhos de debris. Provavelmente pertenceria este notável casarão a outro dono, visto que já passava
por uma densa reforma.
Aliás, estas ruas do Centro Histórico de
Salvador, atualmente, já não são tão seguras, principalmente para se
transitar às escuras. Percebi no que residia ali, bem defronte ao
Convento do Carmo, o vulgar banal desses dias –a presença ostensiva de um
policial armado. À sombra da tarde de um velho muro, via-se mudo. Em seu ofício
de olhar e zelar por outros, indiferente, por não mais ter o que fazer,
assim passava seu tempo, a brincar com os próprios dedos. A conversar consigo
mesmo.
Subir e descer o Pelourinho, por aquelas
íngremes ladeiras, calçadas de pedra redonda, e sem medo de escorregão, é
galgar a íngreme certeza de que –, Deus, é mesmo brasileiro!
É na aragem fresca das tardes de Salvador, sentindo o sopro úmido da sua baía azul, que
penso estar mais perto do céu. Ao lado de seus anjos barrocos, negros baianos–
descendentes de alforriados contentes- e dos não legitimados, fruto de paixões exacerbadas ('petra scandalis'), que os jesuítas caolhos ignoraram - bastardos morenos tupinambás, gerados por cunhatãs, escolhidas, ao leito do português Diogo Álvares, escondido nos arrecifes de 'Maiririguig', na embocadura do Rio Vermelho. Sinto no ar toda a
organicidade de Salvador, lama de seus becos recônditos, chão de patife, às
vezes palco de afogados, daqueles desesperados, a boiar em águas de pensamento
raso. Tudo de bom e de ruim aqui convive, lado a lado. E é nessa convicção que se pode alcançar a graça dos cinco mistérios gozosos ou, a reencarnação do santo
preferido. Um estado de graça. É tudo isto o que nos leva a galgar no
prazer a íngreme incerteza desses nossos dias.
(Ah, aquele camarão! O que veio de brinde; a
baiana foi tão generosa!)
A leitura desse mundo cotidiano, faz
tempo, vem se afastando dos métodos tradicionais fixados pelo livro ortodoxo.
São esses, inegavelmente, os tempos da leitura eletrônica. Vejam só,
alguns amigos já entraram nessa onda, mas eu, pelo menos por enquanto,
ainda não me decidi. Na verdade ainda não caí de amores pelo
e-book.
Particularmente, vejo o livro como matriz de
sensibilidade. Mas, acima de tudo, objeto de linguagem. Por isso cuido bem dos
meus. Tenho ciúme deles. De vez em quando faxino as prateleiras da estante e, com
carinho, vou tirando a poeira intrusa. Aprecio cada volume,
distintamente. Até sinto o cheiro e a lembrança de algum lugar, a um tempo
qualquer. Faço leitura sinestésica. – Eu sinto seu corpo em minhas mãos!
(“Nada mudou por aqui”– Amália Grimaldi)