sexta-feira, 15 de agosto de 2014

O Olho do Badejo - Amália Grimaldi


Figura de capa
Prefácio

 O Olho do Badejo

Século XVII. o neerlandês Pieter Pieterzoon Hyin e sua esquadra aportaram  no arquipélago de Tinharé, litoral da Bahia. Sem mais delongas, invadiram e saquearam  os bens da fortaleza do Morro de São Paulo. Conta a História que ele foi derrotado pelos portuguêses.  Fato contado e testemunhado. Na Bahia litorânea os neerlandeses se fizeram presentes. Em  Recife se fizeram por mais tempo. O pecado da luxúria e seus detalhes por certo não foram registrados na história. Teriam eles, homens pecadores, convidado ao camarote as exuberantes mulheres daquela ilha? Ou foram elas, selvagemente subjugadas,  ao longo das mais belas praias da Bahia?  Sim e não. Não e sim.

Eis aí o irrevelável dogma dos cinco mistérios gozosos. Talvez nessa crença se possa alcançar o perdão da graça divina. Quiçá, a reincarnação. Do santo preferido. Um verdadeiro estado de graça.  Tanto  van Dortt, como Pieter Pieterzoon Hyin, seiram eles oriundos de uma Europa reformista, provavelmente teriam sido Calvinistas. Praticando atos de heresia, sairam eles a degolar os santos dos altares portugueses. Além de bens materiais e enriquecimento ilícito, também foram movidos por desejos carnais. Comum a todos mortais. Bestas desavisadas. A galgar no prazer carnal a íngreme incerteza daqueles seus dias. Para nós restou a certeza desses nossos dias. Do colonizador europeu herdamos costumes – bons e maus.

Lenda de céu. Embalo de estrelas. História de mar e terra, aqui se fez promessa gravada. Um poema barroco. Um rococó que se desenha emocional, na racional loucura do homem, endeusado na dança de seu egocêntrico engano. Quando Cabral aqui na Bahia aportou, declarou Pindorama, a terra das palmeiras,  descoberta.  Num gesto de gratidão, no regresso ao seu reino,  Cabral então, de mão beijada, ao rei de Portugal ofertou um rico presente. Valioso carregamento, de pimenta do reino e pau-brasil.  

“Ah, como são doces as mulheres tupiniquins! Cheiram elas a canela!” Guardado distante respeito, provavelmente teria assim dito Cabral à Sua Majestade. Como paredes têm ouvidos, os cochichos da corte logo alcançariam aos ventos a cobiça dos flamengos, aqueles altos homens dos Países Baixos. Mais conhecidos como holandeses. Note-se que a Holanda ainda não existia.  Posteriormente, a Companhia das Índias Ocidentais, bem aparelhada, se fez ao mar. Eis que, no século dezessete, na Baía de Todos os Santos, chega a esquadra do militar neerlandês Johan van Dortt.  Homem de alta estatura,  cabelos loiros e olhos azuis. Segundo as más línguas, sabe-se que, de tanto comer aspargos, tinha ele verde a cara.  E assim pouco durou. Quando menos se esperava veio o engasgo fatal: Van Dortt foi pego. Com uma lata de aspargos de Horst em suas mãos! Abatido, foi ferido de morte pelo nobre capitão Padilha, bem em frente ao Forte de Nossa Senhora de Monte Serrat, na entrada da Baía de Todos os Santos.

Mas é certo que bem antes desse histórico episódio, passara ele dias realmente felizes. Na aragem fresca das tardes de Salvador, a sentir na cara o sopro úmido da baía azul, deleitava-se contente.  Talvez pensasse então, que pudesse estar mais perto do céu, visto que, rodeado por escravos negros,criaturas esculturais, robustos anjos barrocos. Negros baianos legítimos. E dos não legitimados, mulatos exuberantes. Fruto de paixões exacerbadas. Ignorado acontecimento pelos jesuítas. Parece que fizeram vista grossa aos bastardos mulatos. Os filhos de meus senhores com as beldades de suas senzalas. Quanto à gente morena, paridas de cunhatãs, as mais belas, as que foram escolhidas a dedo, ao leito da luxúria de Diogo Álvares Correia, dissso guardou-se sigilo. Somente ganhou nome Catarina Paraguassu, casada com o então Caramuru, lá na França, de papel passado e tudo mais. Confome os desejos da Santa Madre Igreja. O jesuíta então, salvou assim a sua pele. Quanto ao casal famoso, sabe-se que deixaram muitos descendentes. Descansam seus ossos sob lápide de mármore branco, no louvor, lá na Igreja da Graça, em Salvador.

Pele alva.  Olhos azuis. Motivo de distinção. Não ser igual a quem lhe opõe resistência. No espaço condenado da sua gênese perdida, o menino Onésimo, em angustiante conflito parece mergulhar. Drama existencial singular. Naqueles cachos louros que a tesoura da maldade não poupou, vê-se o cromatismo distinto. Diria bem ajustar-se ao que se desejaria exprimir, a sua vontade.  Um resquício de vaidade. A continuidade perdida do seu Eu.

 “Sou descendente de holandês...!” É dito e confirmado em alto e bom som pelos mais remotos cantos da costa baiana. Alegando-se neste princípio talvez, certa nobreza de passado. Ou quem sabe, significando ser melhor do que a maioria ordinária.

Século XX. Entre os vilarejos baianos de Cajaíba em Valença, e Cova da Onça em Cairu, desenrola-se a história de Onésimo Vançarole.  

Cajaíba, no vasto manguesal circundante, um raro berçário de espécies marinhas, guarda neste complexo meio a riqueza de um complexo bioma. O arquipélago de Cairu e a costa litorânea de Valença encontram-se geograficamente próximos. Latitude 14º sul.

Mês de dezembro. Num claro dia de verão, por sorte dos bons ventos e do destino, um pequeno barco com bandeira italiana lança âncora em águas calmas. Atraente bacia de mar azul-turquesa, no arquipélago de Tinharé. Navegando o iate Medusa, o experiente velejador italiano, que pelos nativos, passaria a ser chamado de Seu Dino. Em viagem de férias com a família, a esposa e as duas meninas, vislumbrou ele, com grande satisfação, a paradisíaca  Ilha de Boipeba no arquipélago de Tinharé.  Escolheu o vilarejo de São Sebastião, uma remota praia desta ilha, conhecida como Cova da Onça, lugar onde teve início uma singular aventura.  A vida do navegador italiano e a do menino cajaibano Onésimo, ali se cruzariam. De maneira definitiva. 

Seu Dino, bom mergulhador, encontraria no fundo desse mar composto de arrecifes de corais, alguns  elementos preciosos confirmando a história da Bahia colonial.  Numa  leitura de códigos decifráveis simulando uma leitura de Braile, calcificações de moluscos na superfície de artefatos, a escrita do tempo. Pedaços de louça, cacos de antiga porcelana. Isto despertou o interesse da família pela história do vilarejo. História entremeada por episódios notáveis, verdade e mito. Bem próximo dali naufragara a caravela espanhola Madre de Dios, lugar este conhecido como Ponta dos Castelhanos. A partir daí, a vida simples do menino Onésimo, tomaria novos rumos. Por motivo justo, por ser um menino rejeitado pela família,terminou sendo adotado pela família italiana. Onésimo, mais tarde faria a sua nova morada, na distante Sicília. À sombra de pedras seculares que a catapulta de Arquimedes poupou Onésimo fez seu refúgio seguronesta ilha, na antes grega Siracusa.

O Olho do Badejo – O valor da forma a serviço da narrativa. Um jogo involuntário de forças une-se à emoção. Onésimo, personagem um tanto incomum nesses dias virtuais, diria mesmo, tratar-se de uma figura genuína, personagem pertencente a um inocente presépio de Natal. Um daqueles que ele ajudara a montar na infância, lá na casa da vovó. 


Amália Grimaldi

Guaibim – Valença, Bahia – Brasil.

Dezembro, 2012.

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