terça-feira, 7 de janeiro de 2014

Pingos no chão e bolhas no ar...




Pingos no chão e bolhas no ar...

 

À Avenida Leovigildo Filgueiras, no bairro do Garcia, ao dobrar-se a esquina do Colégio Antônio Vieira, havia lá um beco de má fama. Havia nesse lugar quintais malvistos. Difamados, eram esses terrenos abandonados. Faziam a alegria de nossos verdes canudos. Aí cresciam fartas mamonas.

Desvio do olhar. A casa de Leonor, de tão alva,  mais parecia um bolo de noiva! Na realidade, tratava-se da Rua da Curva Grande.  Hoje irreconhecível.  Luxuosos arranha-céus  foram aí surgindo, ano após ano, e logo substituíram  as graciosas casinhas coloridas tipo bolo confeitado. No movimentado trânsito de carros novos, diria hoje tratar-se de  morada de alto padrão.

 Essa curva grande, que se dobrava  à esquina do colégio dos padres, não rezava  de boa reputação. No deslize da atenção adulta,  eu e as meninas gêmeas da Casa da Torre,  mais as outras meninas, as da Casa Rosa, embarcávamos num prazer volátil. Seguíamos a viajar naquelas esferas transparentes. Planetas de luzes. Bolhas de sabão azul.

Canudos de mamona. Água de sabão no caneco esmaltado. O chão de nossas casas se via constantemente molhado. Na dança das horas, parte da rotina doméstica, a vassoura e o esfregão se mostravam incansáveis. Mantra necessário, uma forma de oração.  Todos os dias havia reclamação. Acostumada àquela lenga-lenga, fazia ouvido de mouco. E assim ia passando.

Pingos no chão e bolha no ar. Como passavam leves aqueles meus dias! Ensaboados, no prazer molhado. Escorregadia, deslizava nas mentiras. Por sinal, desculpas bem esfarrapadas, mas, que de certa forma, me livrariam de possíveis castigos. Detestava ter que ficar de pé, de cara contra a parede.  – “Vou ali, na casa de tia Gem...” E assim desaparecia de vista.  A esquadrinhar limites impossíveis, daquele universo proibido, sentia-me que nem Marco Polo em busca de novas terras. Fascínio irresistível, de quintais proibidos.

Cara feia de meter medo a menino, e gente grande também. Fotografia em preto e branco exibe facínora de crônica policial. Personagens de rua vestem, muitas vezes, acontecimentos sinistros. Na aparência se fazem figuras do mal.  Havia justificada preocupação. Até que um dia, as barras de sabão azul, para nosso desapontamento, desapareceram do tanque de lavar roupa. Eram tantos os culpados, mas não se poderia apontar o dedo. Não havia muitas certezas. Sem outra alternativa, os adultos sabidos acharam melhor esconder o sabão das nossas vistas. Na verdade criatividade nunca nos faltou. Logo arranjávamos outra saída.

Guerra de arraias. Com os meninos do Beco do Sabino aprendemos fazer coloridas arraias de papel de seda e lascas de bambu. Mal intencionada, a linha, como ainda se faz hoje em dia, era temperada com uma espécie de cola sinistra. Para tal, se fazia necessário moer o vidro. Cabia ao bonde fazer o serviço de graça. Garrafas vazias, de vinho ou de cerveja, surrupiadas às pressas das prateleiras da escura despensa da casa seriam esvaziadas para tal. Mais tarde, davam por falta das garrafas. Fazíamos cara de inocente e ficava por isso mesmo.

De ruas e de becos próximos, do Beco do Sabino e do Beco dos Protestantes.  Turma grande. Meninas e meninos, mais ou menos da mesma  idade. Fazíamos juntos, incursões desastradas. Nos enfiávamos por aqueles quintais de perigos fascinantes.  Ninguém por lá nos achava. Cortar o dedo em cacos de vidro ou em latas de conserva era acontecimento banal.  Às vezes dolorosas queimaduras nos faziam chorar de dor. Quando ao passar de raspão pelos arbustos de urtiga e cansanção. “Urine em cima que passa...” Na verdade doía mais ainda.

Pingos no chão e bolhas no ar.  Corríamos atrás da nossa preciosa invenção. Verdes canudos de mamona. A chafurdar por aqueles quintais repletos de rejeitos domésticos, divertíamo-nos a valer. E sem a falsa necessidade, de colorida matéria plástica. Carrinhos e bonecas. Os brinquedos dos possuídos de bens eram comprados nas lojas caras de Salvador, na Rua Chile.

Quintais reveladores de gratas surpresas. Esses lugares cheinhos de perigos nos atraíam. Via-se aí coisas impensáveis. Até brinquedos caros! Levemente danificados, eram despejados  nos terrenos baldios.  Os criados da Casa Amarela e também da Casa Alva, disto se encarregavam, sob as ordens dos patrões.

Férias escolares. Tempo de vadiar. A boneca loira de olhos azuis com um rombo na cabeça foi disputada a tapas. Ganhei!  Ao chegar em casa, que decepção!  Arrancada das minhas mãos,  logo foi levada de volta para o lugar de onde tinha vindo – para o lixão da Curva Grande.

Na realidade, havia aí nesse pedaço de bairro, além de quintais malvistos, o império de uma feia maldade    um espaço de separação radical. As amas, da Casa Azul e da Casa Amarela, seriam encarregadas de manter as meninas de seus amos o mais distante possível  do nosso grupo.

O grupo dos rebeldes. Leonor, a menina esnobe da Casa Branca, virava a cara quando passava. Seguia galante, ao lado da babá empertigada, de touca e avental, num engomado uniforme branco. Mas de certa forma até nos comunicávamos.  Fazíamos caretas horrorosas. Trocávamos gestos, não muito educados, mas de grande satisfação afinal.

Cabelo  rapado e pimpão ajeitado em pastosa brilhantina.  O estilo topete era moda na época. Havia guerra de mamonas. Meninas contra meninos. Ardilosa, manejava bem o estilingue. Logo surgiam lustrosos calombos nas cabeças dos meninos. Só os mais fracos choravam. Bobos. Por isso mesmo se tornavam alvo predileto das meninas.  Quantas vezes corria a esconder-me no enorme guarda-roupa negro do quarto do meio. Sentia-me culpada por fazer o menino chorar. A mãe então, enviava seu porta-voz, pau pra toda obra, a ama da família, que vinha bater à nossa porta.  Amélia, a nossa fiel ama negra, usava de bom senso. Tentava acalmar os ânimos. 

– “Pode deixar... O pai dela vai logo saber. Assim que sair a última fornada. Ela (eu) vai ficar de castigo!” Geralmente isto não acontecia. Afinal, eram tantas as reclamações! Não adiantava mesmo levar adiante aborrecimentos menores. “Coisa de criança...” 

Meu pai, o padeiro galego do bairro, simpático e comunicativo, nem tinha ainda cabelo branco quando enviuvou. Disputado pelas solteironas do bairro, principalmente por Dona Olga, a professora de Matemática da banca da tarde e que nos enchia de mimos. Parecia que ele andava mesmo era muito ocupado. Não se decidia. Nem por esta, nem por aquela. Noite e dia se via ao batente, entre o forno e o balcão. Meu pai costumava  acordar bem cedinho. Mantinha a mão na massa. Da  manhã até ao anoitecer. Até que fosse vendido o último pão do balaio.

Notável paleta de cores. Aquele dia  que se ia feliz. Final da tarde ao sol poente. No batente da frente já se via cama feita. Breve morada de cão sarnento.   Satisfeito, na má fama que possuía, o velho cachorro de rua se lambia a nossos pés.

Pingos no chão e bolha no ar. Regresso ao templo. O velho armário de cozinha. Portas trancadas. Chave escondida no bolso do avental. A ocultar a razão do efeito inebriante. Desejo negado moveria prazer intocável. Efêmero existir suportaria o medo no mito da calada intenção adulta. Sim, porque teria na voz, a chave a vez do “não”. Sua intenção malvada.

Terrenos baldios. Histórias reais. Mamonas verdes aí cresciam férteis. Entre fornadas de pão-de-açúcar, seguíamos soprando os nossos canudos. Bolhas no ar. Assim fomos crescendo inteligentes. Na sábia arte de driblar os adultos tolos.  Quantas vezes retornaria aos ermos quintais da minha cara lembrança! De casas abandonadas, dos barrancos molhados. Afamados sumidouros da Rua da Curva Grande.

Aventura de criança, precaução de adultos. Medo razoável. O que viria depois? Irresistível orbitar. A sensação do prazer intocável. Sem mágoas apresso meu passo. Refaço-me em águas antigas. – Pingos no chão e bolhas no ar!

 
Autor: Amália Grimaldi

Valença-Bahia-Brasil

2013

Pingos no chão e bolhas no ar....

Crônicas: “Nada mudou por aqui...”

 

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