segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

Para Eduardo Almeida:


O índio que falava francês

 

Brasil Central. Latitude 14 Norte. Outubro de 1982. Já caía a noite. Da minha base, na aldeia Karajá de Hãwàló, denominado pelos colonizadores religiosos de Santa Isabel do Morro, às margens do rio Araguaia, na Ilha do Bananal, um remoto posto indígena, a esse tempo administrado pelo indigenista Eduardo Almeida.

 

Em São Félix do Araguaia, na margem oposta do rio, já nos limites do estado do Mato Grosso com Goiás, hoje Tocantins,  ficava a paróquia sede do bispo Dom Pedro Casaldáliga.  Fundador da Pastoral da Terra, era ele ideologicamente considerado homem perigoso. Sob um regime politico autoritário, os militares ainda no poder,  este religioso era vitima de variados tipos de repressão. São Félix do Araguaia, para nós funcionários da Funai, tornara-se lugar proibido, perigoso. Um terreno minado. Havia gente nos olhando, vigiando. Cochichos e delações, era prazer de muitos. Algumas vezes estive aí visitando o bispo. Privilégio meu. Hoje disto tenho consciência. Assistia discussões em torno de assuntos beligerantes. O índio e o posseiro e principalmente, sobre o assistencialismo por parte do órgão federal que assistia aos índios.

 

Missão de trabalho. Rumo norte alcançaria a aldeia de Macaúba. A seguir, a aldeia Javaé. Alcançando o rio Tapirapé, a aldeia do mesmo nome e na mesma área, uma pequena comunidade Karajá. 

 

Mineira de Pedra Azul, Rosinha, moça tímida, era uma professora recém-contratada pela Funai. Seguiria viagem comigo.

 

Percalços de viagem. Uma aventura invulgar marcaria as nossas vidas a partir de então. Diria que,  prenúncio de tragédia anunciada, mas que felizmente não chegou a acontecer. Tornamo-nos amigas. Rosinha deixava entrever na sua face a expressão de natural preocupação. O encontro direto com um mundo desconhecido até então. Sua destinação seria o posto indígena da aldeia Karajá de Macaúba, à margem esquerda do grande Araguaia.

 

Comunicação precária. Valia-se do rádio ou do telégrafo. Não havia ainda nesse tempo telefone celular, nem tão pouco computador.  Caberia ao chefe do posto de Macaúba, o gaúcho Lourenço, o manejo daquela parafernália. Seria um meio de sobrevivência frente ao inesperado.

 

Isolada, longe do meio urbano, Rosinha teria que se fazer valer do seu bom senso. Sabedoria seria companheira. Ser corajosa afastaria os medos. Uma vez por mês, às vezes nem isto, teria a visita de um dentista, do médico e da enfermeira que viria aplicar as vacinas necessárias.

 

Como de costume, a cada três meses, seguia eu em missão de trabalho. Durante a estação das cheias, o transporte, muitas vezes precário em barcos relativamente pequenos, eram sempre cheios. Os pequenos aviões que se fretavam, os monomotores, estariam disponíveis somente na época da estiagem. Nessa específica área de mata isolada, entremeada por rios e lagoas, eu era a única dentista disponível a serviço da Funai. Por dois anos permaneci como tal. Até que um dia, o coronel, chefe do departamento de saúde em Brasília ao qual estava subordinada, olhou para os belos desenhos que  estampava. Belos motivos Karajá que a Xureréa, mãe do Korihete e antiga mulher do cacique Maluaré, havia pintado nos meus braços e  mãos,  com tinta de jenipapo e carvão.  Virando-se para o assistente ao lado, o coronel, ironicamente perguntou: "é esta a dentista que queria se tornar índia?!"  Apenas o início do meu fim. No regresso das minhas férias em Salvador estaria, irrevogavelmente demitida.

 

Atrelada à uma equipe técnica mista, viajava  rumo às comunidades indígenas. Contornando a Ilha do Bananal, navegando o braço menor do rio Javaés, chegávamos à aldeia Javaé e de Macaúba. Rio acima, alcançávamos o Tapirapé, e a aldeia indígena do mesmo nome.  

 

Calor infernal, mosquitos e desconforto. Nossas vidas estariam, literalmente falando, nas mãos de Seu Manoel, um conhecido barqueiro, homem nativo dessa região, considerado bravo e corajoso. Na sua experiência, de muitos anos, sabedor de cada curva do rio, tornara-se ele muito respeitado. Confiável.  Com ele acreditava-se em viagem segura.

 

Término da estiagem. A cada curva do rio, que ainda se estreitava devido ao avanço das praias, os bancos de areia se revelavam traiçoeiros. O Araguaia, entre o nascente e o poente, exibia a maravilhosa paisagem. Única. Novos eventos. Cada viagem revelava surpresas. Jacarés enormes, sonolentos lagartos me lembravam dinossauros. Um olho fechado e outro aberto, mas  despertos, pareciam em sono profundo.  Seus ouvidos estariam bem abertos a qualquer movimento mais próximo. Um passante incauto, ave desavisada, capivara sedenta, por certo cairiam logo no papo do faminto jacaré. Natureza pródiga. A cadeia alimentar aí se completava. Seus dentes, juntamente com a força de portentosa mandíbula, causavam receio. Animal poderoso. Todos nós tínhamos medo dos jacarés. Talvez por sua bizarra aparência. Quando da aproximação (intrusa) no seu habitat certamente se sentiriam ameaçados.

 

Seguíamos viagem de maneira plácida, mas atentas aos obstáculos, geralmente pedaços de pau, troncos de árvores que caíam dos barrancos costeiros o que poderia causar acidentes. Poderiam danificar a hélice do motor do barco.  Acompanhávamos enlevadas  cada detalhe daquela deslumbrante paisagem que ia se revelando a cada curva do rio.

 

Finalzinho de tarde meio nublado. Qual manto envolvente, assistíamos a descida daquele sinistro cobertor, um manto de nuvens escuras.  O horizonte à nossa frente subitamente desapareceu.  Inflado os medos,  diante de tal aviso, o qual não se poderia ser ignorado, visto que já  soprava, um forte vento de proa.  Eliminadas assim possíveis dúvidas, chegou-se à uma sábia decisão. Seria de boa prudência passar a noite num daqueles bancos de areia. O mais alto possível! Desnudado pela seca do verão, mas que já se ía tangido pelos ventos da nova estação, as águas do rio já subiam de nível. Aí, não correríamos prováveis riscos. Pelo menos assim se pensava.

 

Seu Manoel, cauteloso, diminuiu a marcha do motor. Aportou bem devagarzinho às margens do alto barranco. Cuidou logo de levantar a rabeta do motor  a fim que esta não viesse a bater na areia. Correria o risco de danificar-se. A seguir, desembarcou parte da bagagem. A minha  gorda mochila, a dele e a da professora Rosinha, também avolumada.

 

Trazia o barqueiro, como de costume em missão de viagem longa, uma manta plástica de bom tamanho. Quanto a nós, as duas mulheres, já fragilizadas pela perversa besta do medo crescente, não trazíamos coisa parecida. Proteção, em caso de chuva num barco aberto. Talvez por esquecimento, não se cuidara antes desses pequenos, mas importantes detalhes.

 

A chuva já se avizinhava. Apavorante. Traria com ela um forte temporal, com a potência energética de  raios e trovões. Fenômeno muito comum  a essa época de final de outubro.

 

Curiosa, notei que Seu Manoel ia cavando com as suas largas mãos na areia molhada um largo buraco. Esculpiu, na sua experiência sertaneja, um largo espaço, não tão fundo, mas o suficiente para caber encolhido o seu avantajado corpanzil. Valor inestimável, aquela  sua inseparável maleta de executivo, uma  007 de couro negro, carinhosamente, junto ao seu corpo logo acomodaria.  Seu Manoel conservava-se calado. Apenas agia. Então entendemos que deveríamos fazer o mesmo. Por sorte, ainda havia de reserva no barco  outras mantas plásticas. Não tão largas como a dele, mas serviriam, pelo menos para cobrir as nossas cabeças. Seu Manoel, sem dizer uma palavra, gentilmente, no seu jeito caboclo, logo nos ofereceu.

 

Antes de adentrar na sua alcova-buraco, Seu Manoel  abriu a maleta 007 e daí tirou uma arma – um revólver! Meu Deus! Pelo tamanho imaginei tratar-se de um trinta e oito. Já tinha visto coisa parecida em crônicas policiais de jornal. Rosinha e eu, ainda com muito medo, não tínhamos palavras para retrucar. Nunca na minha vida havia tocado numa arma! Rosinha tão pouco.

 

“Não façam cerimonias! Qualquer coisa... Podem se servir!!!.” Expressado, de uma maneira tão natural, com tapinhas sobre o volume que descansava sobre a sua maleta. Isto soou para nós como uma espécie de caçoada. Homem prático e viajado, Seu Manoel não tinha mais ou menos. Ia logo direto ao ponto. Ao que falava se dava crédito. Pelo menos por questões de sobrevivência. Aliás, nunca escutara  antes, principalmente tratando-se de um cavalheiro rude, tamanha ‘gentileza’.

 

Rastejante, como um lagarto, via quando Seu Manoel  jeitosamente se enfiava sob a larga manta. Logo via-se coberto, na sua alcova-buraco, ao lado de valioso pertence –, a sua maleta 007.

 

Tremendo de frio, e de medo, meio aterrorizadas, Rosinha e eu significativamente  nos entreolhamos.  – Meu Deus! O que será da gente! Pensei preocupada. Acho que ela também. Este foi sem dúvida um dos momentos da minha vida em que mais me senti indefesa. Nem  durante as minhas andanças pela vasta selva amazônica, entre Colômbia, Peru e Brasil.  Trecho problemático com o tráfico de drogas, animais silvestres e madeira, faixa de fronteira tríplice, onde vivi por cinco longos anos, não me sentia desse jeito. Diria desvalida. Entendi a lição. A partir daquele momento, sem pai nem mãe, seria cada um por si e Deus por todos.

 

Caiu a noite. Interminável. Tão densa como a forte chuva.  Mas esta durou breve. Uma meia hora, talvez. Quando cessou de pingar, dos arbustos sobre os nossos telhados, providencial plástico de toalhas de mesa com adornos de abacaxis e bananas, algo novo já nos incomodava sob as vestes.  Enormes formigas, as conhecidas andadeiras, passeavam sobre a nossa pele. Um tormento.  O buraco se encheu delas. Não mordiam, mas incomodavam com a coceira irritante.  Na verdade éramos corpos-vivos, mas sentíamo-nos quase defuntas.

 

De longe nos alcançava o esturgir de onças e os mil ruídos de bichos outros.  Ameaçador.  Tão longe e tão próximo! Este era o som da floresta circundante que tomava conta da noite. Ninguém ali iria dormir. Talvez cochilasse um pouco. Por questões de sobrevivência, nem é preciso dizer, acho que ninguém, em sã consciência, conseguiria dormir numa situação daquelas. Procurei afastar a lembrança temerosa da tarde. Aqueles enormes  jacarés ao longo das praias, não muito longe de onde estávamos.

 

Lanterna prestativa. Seria uma boa arma de salvação, pelo menos assim pensava. Com frequência clareava o mostrador do relógio. Acho que estas foram as horas mais arrastadas da minha vida. Finalmente aliviada, assistia aos primeiros sinais de um final prolongado de uma madrugada sinistra.  A radiosa aurora, cuja luminosidade, resplandecente no céu ainda meio escuro, logo desvaneceu os maus presságios. Aos primeiros lampejos do sol logo partiríamos. Sem o café da manhã. Na ansiedade, enchemos o nosso estômago com água e muitas bolachas, uma atrás da outra.  Só nos restava sonhar com uma mesa bem posta. Talvez com sorte,  pão torrado e banana frita e, o aroma volátil de um café recém-coado. Apenas miragem distante. Ilusão de faminto.

 

Paramos em Macaúba. Fomos bem recebidos pelo chefe do posto, o gaúcho Lourenço. Curiosamente ele era casado com a índia Suyá,  a filha do velho Karovina, um dos chefes da aldeia Karajá.  Comemos bananas cruas, e beijus sem sal. Ao invés de café, somente  água fria do pote, gentilmente oferecida. Abastecemos o barco com as frutas que Lourenço amavelmente nos ofertou.

 

Despedidas. Abraços, recados e recomendações. A professora Rosinha ficou. E nós, o barqueiro e eu, partimos. No barco, restou um enorme vazio. Sentíamos falta da mineirinha de Pedra Azul. Embora calada, sua presença somava esforços. Companheirismo.

 

Finalmente, já no Tapirapé. Preocupada com o tempo, comecei a pensar como seria a volta a Santa Isabel do Morro, a minha base já tão distante. A estação das chuvas comumente trazia incertezas. Algo me dizia, que após missão cumprida, como em outras ocasiões, regressaria sã e salva.  Remeteria à Funai em Brasília para avaliação de praxe, os muitos papéis, geralmente  em quatro vias, relatórios de mais uma atuação. Quanto à  minha pessoa, restariam muitas dúvidas, e questionamentos lógicos quanto a duvidosa empreitada. Por sua honesta posição, sempre ao lado dos índios, o indigenista Eduardo Almeida, terminou por ser dispensado. Uma pena.

 

Xaropes ineficazes. Remédios vencidos. Afinal, para quem seria o benefício?  O almoxarifado continuaria repleto desses vencidos. O malefício estava feito. A mortalidade infantil era fato. Quantas vezes se discutia com o bispo esta espécie de atuação. Estratégia velada de possível genocídio?

 

Após seis horas de “voadeira” rio acima, finalmente desembarcava. Os índios, sorridentes, ajudaram a transportar pelo barranco acima as tralhas necessárias ao trabalho de “arranca-dentes”.  Caixas de suprimentos variados. Trazia velas e fósforos, também açúcar, café e biscoitos, coisas que dividiria com os índios. Seriam artigos indispensáveis para um mês de permanência, No final ficaria desprovida mas comungava o bem comum. Comia satisfeita a comida de todos.

 

As senhoras, missionárias católicas, as simpáticas irmãzinhas francesas da ordem de Santa Tereza, vieram me receber com sorrisos de boas-vindas. Apesar do calor sufocante, trajavam-se elas, invariavelmente, em seus hábitos negros. Os índios, se viam livres de adereços, alguns de calção e outros, na sua maioria, andavam seminus. Questionável era a presença das missionárias católicas por parte de antropólogos ortodoxos. Mas, bem ou mal, dia e noite, estariam elas prontas a arregaçar as mangas, assistindo a comunidade na medida do possível.

 

Partos complicados.  Malária e disenteria. Males comuns. Fisgadas de arraia eram comuns aos homens que saíam para pescar. Acidentes ali não faltariam. Médico, só de muito longe. Às vezes levavam três meses para chegar até ali. A depender da gravidade vinham de Brasília, pois o da base encontrava-se  sempre em deslocamentos. Fazendo cursos ou em campanha de vacinação.

 

As missionárias francesas, responsáveis pela catequese dos índios, eram de um apoio logístico inestimável. Principalmente a irmã Maria. Enfermeira graduada, já havia atuado na África, no programa do Sem Fronteiras. 

 

Graças ao aparato radiofônico da missão, podíamos solicitar um barco ou um avião a fim de conduzir o funcionário de volta à sua base. A estas alturas  as águas já estariam bastante altas e a viagem de avião monomotor se tornaria quase inviável. Voltaria de barco outra vez, torcendo para que fosse o de Seu Manoel.

 

Andava pelos estreitos caminhos da mata entre a aldeia e a sede da missão. Bem, não sei onde começaria a realidade ou onde terminaria a minha vã fantasia.  “Bonjour mademoiselle!”, Era a voz do índio Romany. Espantou-me tal saudação. Bizarro, vinda da boca de um índio Tapirapé.  Naquele longínquo meridiano de uma isolada selva mato-grossense, imaginei possível ordenação, equivocada da luz, na trajetória de primitivos costumes.

 

Enquanto aí estive, Romany tentou ensinar-me algumas palavras da língua o Tupi. Era bem vinda à aldeia Tapirapé.  Romaní tentou ser meu amigo e assim o conseguiu. Mostrou-me seus desenhos a lápis de cor. Neles se distinguiam  traços próprios daquela cultura. Eram besouros, borboletas e o icônico avião da Funai, cujo  símbolo, bem conhecido por sinal, um vistoso cocar de penas de araras, nas cores azul e amarelo. Inconfundível.

 

Se por acaso chegasse alguma autoridade de Brasília, Romaní fazia questão de usar o quepe e o rayban do piloto. Não sei como conseguiu. Na verdade sentia-se ele comandante, do seu pequenino avião de papel. Pelo seu desenho mostrava-se que nem  um chefe, uma pessoa importante. Fizemos amizade. Romaní ensinou-me as trilhas secretas da floresta. Revelou-me preciosos mimos da natureza. De variadas cores, passarinhos e aves maiores. Quanta diversidade! Fazia questão de citar todos os seus nomes. Tamanha empolgação. Seria quase impossível gravar os muitos nomes, principalmente na língua Tapirapé. Flores pequeninas, delicadas orquídeas brancas, inacessíveis, no alto de longos troncos,  maúbas centenárias. Belas imagens. Inesquecível panorma, restaria-me de consolo.

 

Somente o básico. Um fogareiro a gás. Um muflo pesado. Uma caixa de metal com o instrumental que necessitava para o trabalho. Romaní passou a acompanhar-me nos eventos odontológicos. durante a locomoção pela aldeia ele fazia questão de carregar a pesada tralha. Se precisasse de água, lá ia ele pegar.  A mais limpa possível,  num trecho de rio ou distante igarapé, meio escondido entre as árvores. Água boa, dizia ele. Além da função de arrancadora  dentes, também tirava moldes dos desdentados a fim de confeccionar as dentaduras. Eram tantas! Na verdade, o trabalho do dentista seria erradicar, definitivamente, os dentes estragados, extraindo-se os injuriados. Seja de adultos ou de crianças. Sentia pena. Não havia nenhum tipo de prevenção odontológica. Falava-se muito. Vocês devem escovar seus dentes após as refeições... Mas eles comiam a toda hora, quando bem entendessem. Era um coquinho aqui, um pequi ali, enfim, como se diz nessas situações, era o mesmo que tentar encher um saco sem fundo. Procurava ensinar-lhes como se deveria escovar os dentes. Palavras ao vento.

 

A Funai enviara a pedido meu, um lote de caixas com escovas de dentes, em variadas cores.  Todas em tamanho grande! Para minha surpresa, na véspera da partida,  já via algumas dessas espalhadas pelos arredores, nos terreiros das malocas. Serviam apenas para escovar os utensílios domésticos. Se não serviram para seus dentes, pelos menos, para limpar a fuligem das panelas já se mostravam eficientes. Cultura ultrajada. Alimentação introduzida. Açúcar e amidos. Bombons e bolachas. Danos consequentes.

 

Uma tarde, após longa caminhada juntamente com algumas crianças, alcançamos o plateau da montanha próxima. Uma elevação de talvez noventa metros de altura e que sobressaía imponente na vastidão daquela floresta plana. Espíritos do universo Tapirapé ali habitavam. A vista se mostrava fascinante ante os efeitos lúdicos da luz poente. Variações idílicas em torno do verde. Sentia-me realmente preenchida. A interpretar o mundo ao meu redor, aquele pedaço de paraíso, onde os mosquitos e o calor fariam qualquer um desistir. Aliás, desconforto não sentia. Agonia sublimada.

 

Sempre ocupada, os dias rapidamente iam se passando. Com pesar, conferia no calendário de bolso, que o dia da partida estaria próximo. Nostalgia. Numa manhã  formada por nuvens escuras, comecei arrumar a bagagem. Agora bem maior, com os presentes que havia recebido dos índios. Romaní foi avisar-me,  lá na enfermaria,  que o barqueiro, atendendo ao pedido do radio da missão,  já havia chegado.  Romaní parecia triste, e eu também. Eis quê naquele instante final, ressuscitando uma certa mentalidade  catequista – que ainda habitava em mim, sem muito refletir, ofertei-lhe exultante,  uma lata de “Biscoito Maria”.  Foi  aí então, que  caí na desgraça sem volta. A da culpa imediata. Pois, aquele universo orgânico, único, em meio a tantas bananas e tubérculos nutritivos, acabara de ser violado. E por mim!  Entretanto, via num sorriso aberto, e sem restrições de estética, de levar  a mão à boca,  o agradecimento sincero. Encheu-me de satisfação.

 

Romaní correu até a sua maloca. A família o acompanhava. Pronto já retornava, com outro presente: uma pequena e delicada cabaça, decorada com graciosos desenhos geométricos, um motivo Tapirapé, que ele mesmo havia feito. Agradeci emocionada.

 

Visão surrealista – cachorros famintos e galinhas alvoroçadas já brigavam por pedaços crocantes de biscoito. Subitamente, para minha surpresa, sem demonstrar nenhum constrangimento, via quando ele abria a lata de Biscoito Maria e a esvaziou de todo o seu conteúdo. Eu vi Maria sair da lata!  À vistosa lata dourada destinava-se uma outra função: serviria para guardar a sagrada plumagem das aves. De arara, azul e vermelha, também de colhereiro, periquito e outros pássaros raros. Penas e plumagens. Tão especiais, eram como se fossem um caro artigo de joalheria. Eram as joias da floresta que enfeitariam os corpos em rituais sazonais.  Rituais de iniciação, ocasião de nascimentos e, principalmente, cerimoniais fúnebres.

 

Os biscoitos não seriam tão importantes assim. Entendi. Mais uma vez ouvi de Romany o suave, “merci, mademoiselle”. Proporção inversa, ou fruto metabólico do meu ego? Sua vozinha entrou no meu sistema e nunca mais daí saiu. O fantasma do espírito desse tempo, de vez em quando,  ainda em mim se faz presente.

Lembrei-me então de um fato marcante, quando da passagem dos meus anos de adolescência. Foi no ano de 1969. Meu pai comprara o nosso primeiro aparelho de televisão, para que eu e meus irmãos menores pudessem assistir a chegada do homem à Lua. Feito temporal. Importante. Um marco na história da nossa cultura. Responsável por inexoráveis mudanças que vieram a seguir. As guerras ideológicas e o surgimento do universo eletrônico. O mundo realmente  encolheu.  estrambólico e  feioso, assim era o móvel do aparelho de televisão. Tinha o formato de uma caixa grande, sustentado por três finas pernas de madeira roliça no estilo “decô”. Novidade esta que eu e minhas irmãs logo achamos por bem adaptar ao nosso convívio. Assim, o cobrimos com um paninho de crochê, encimado por gatinhos coloridos de porcelana barata. 

 

Culturas autocnes, tão diferentes. Lá na taba contente, via cachorros famintos, brigando por pedaços crocantes de “Biscoito Maria”. Na minha imobilidade, diante desse momento único e sem as conexões temporais necessárias, nem no passado nem no presente, caía eu em desamparo. Despencava no abismo das desproporções culturais. Nas selvas quentes do Tapirapé, em meio a uma tarde chuvosa de final de outubro, levitava.  Em contentamentos. Voei por instante, nas asas transparentes do besouro verde. No Tapirapé, Romaní era um índio que falava francês.

Amália Grimaldi
2013.

 

2 comentários:

  1. Que belo texto! e mais ainda- que experiência incrível a sua, Amália. Invejável. Aqui você consta o descaso de que são vítimas nossos índios e os que realmente se interessam por eles. Eduardo Almeida é capaz de ver as injustiças e ficar ao lado dos índios? então fora com ele. Melhor deixar aos que fecham os olhos aos remédios vencidos, à falta de infra-estrutura.
    Mais do que ler, vivi as emoções que você viveu nessa narrativa. Parabéns!

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  2. Olá, Rosomar Fasanaro! Alegra-me que alguém mais tenha lido este texto-depoimento. É a voz que não quer se calar. Ontem e hoje, parece que a fórmula ainda é a mesma. Tudo se repete.
    Abraço, Amália

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