domingo, 12 de janeiro de 2014
terça-feira, 7 de janeiro de 2014
Pingos no chão e bolhas no ar...
Pingos
no chão e bolhas no ar...
À Avenida Leovigildo
Filgueiras, no bairro do Garcia, ao dobrar-se a esquina do Colégio Antônio
Vieira, havia lá um beco de má fama. Havia nesse lugar quintais malvistos. Difamados,
eram esses terrenos abandonados. Faziam a alegria de nossos verdes canudos. Aí
cresciam fartas mamonas.
Desvio do olhar. A casa
de Leonor, de tão alva, mais parecia um bolo
de noiva! Na realidade, tratava-se da Rua da Curva Grande. Hoje irreconhecível. Luxuosos arranha-céus foram aí surgindo, ano após ano, e logo
substituíram as graciosas casinhas
coloridas tipo bolo confeitado. No movimentado trânsito de carros novos, diria
hoje tratar-se de morada de alto padrão.
Essa curva grande, que se dobrava à esquina do colégio dos padres, não
rezava de boa reputação. No deslize da
atenção adulta, eu e as meninas gêmeas
da Casa da Torre, mais as outras
meninas, as da Casa Rosa, embarcávamos num prazer volátil. Seguíamos a viajar
naquelas esferas transparentes. Planetas de luzes. Bolhas de sabão azul.
Canudos de mamona. Água
de sabão no caneco esmaltado. O chão de nossas casas se via constantemente
molhado. Na dança das horas, parte da rotina doméstica, a vassoura e o esfregão
se mostravam incansáveis. Mantra necessário, uma forma de oração. Todos os dias havia reclamação. Acostumada
àquela lenga-lenga, fazia ouvido de mouco. E assim ia passando.
Pingos no chão e bolha
no ar. Como passavam leves aqueles meus dias! Ensaboados, no prazer molhado. Escorregadia,
deslizava nas mentiras. Por sinal, desculpas bem esfarrapadas, mas, que de
certa forma, me livrariam de possíveis castigos. Detestava ter que ficar de pé,
de cara contra a parede. – “Vou ali, na
casa de tia Gem...” E assim desaparecia de vista. A esquadrinhar limites impossíveis, daquele
universo proibido, sentia-me que nem Marco Polo em busca de novas terras.
Fascínio irresistível, de quintais proibidos.
Cara feia de meter medo
a menino, e gente grande também. Fotografia em preto e branco exibe facínora de
crônica policial. Personagens de rua vestem, muitas vezes, acontecimentos
sinistros. Na aparência se fazem figuras do mal. Havia justificada preocupação. Até que um dia,
as barras de sabão azul, para nosso desapontamento, desapareceram do tanque de
lavar roupa. Eram tantos os culpados, mas não se poderia apontar o dedo. Não
havia muitas certezas. Sem outra alternativa, os adultos sabidos acharam melhor
esconder o sabão das nossas vistas. Na verdade criatividade nunca nos faltou.
Logo arranjávamos outra saída.
Guerra de arraias. Com
os meninos do Beco do Sabino aprendemos fazer coloridas arraias de papel de
seda e lascas de bambu. Mal intencionada, a linha, como ainda se faz hoje em
dia, era temperada com uma espécie de cola sinistra. Para tal, se fazia
necessário moer o vidro. Cabia ao bonde fazer o serviço de graça. Garrafas
vazias, de vinho ou de cerveja, surrupiadas às pressas das prateleiras da
escura despensa da casa seriam esvaziadas para tal. Mais tarde, davam por falta
das garrafas. Fazíamos cara de inocente e ficava por isso mesmo.
De ruas e de becos
próximos, do Beco do Sabino e do Beco dos Protestantes. Turma grande. Meninas e meninos, mais ou
menos da mesma idade. Fazíamos juntos,
incursões desastradas. Nos enfiávamos por aqueles quintais de perigos
fascinantes. Ninguém por lá nos achava. Cortar o dedo em cacos de vidro ou em latas
de conserva era acontecimento banal. Às
vezes dolorosas queimaduras nos faziam chorar de dor. Quando ao passar de raspão pelos arbustos de urtiga e
cansanção. “Urine em cima que passa...” Na verdade doía mais ainda.
Pingos no chão e bolhas
no ar. Corríamos atrás da nossa preciosa
invenção. Verdes canudos de mamona. A chafurdar por aqueles quintais repletos
de rejeitos domésticos, divertíamo-nos a valer. E sem a falsa necessidade, de
colorida matéria plástica. Carrinhos e bonecas. Os brinquedos dos possuídos de
bens eram comprados nas lojas caras de Salvador, na Rua Chile.
Quintais reveladores de
gratas surpresas. Esses lugares cheinhos de perigos nos atraíam. Via-se aí
coisas impensáveis. Até brinquedos caros! Levemente danificados, eram despejados nos terrenos baldios. Os criados da Casa Amarela e também da Casa
Alva, disto se encarregavam, sob as ordens dos patrões.
Férias escolares. Tempo
de vadiar. A boneca loira de olhos azuis com um rombo na cabeça foi disputada a
tapas. Ganhei! Ao chegar em casa, que
decepção! Arrancada das minhas
mãos, logo foi levada de volta para o
lugar de onde tinha vindo – para o lixão da Curva Grande.
Na realidade, havia aí
nesse pedaço de bairro, além de quintais malvistos, o império de uma feia
maldade – um espaço de separação radical. As amas, da
Casa Azul e da Casa Amarela, seriam encarregadas de manter as meninas de seus
amos o mais distante possível do nosso
grupo.
O grupo dos rebeldes.
Leonor, a menina esnobe da Casa Branca, virava a cara quando passava. Seguia
galante, ao lado da babá empertigada, de touca e avental, num engomado uniforme
branco. Mas de certa forma até nos comunicávamos. Fazíamos caretas horrorosas. Trocávamos gestos,
não muito educados, mas de grande satisfação afinal.
Cabelo rapado e pimpão ajeitado em pastosa brilhantina. O estilo topete era moda na época. Havia
guerra de mamonas. Meninas contra meninos. Ardilosa, manejava bem o estilingue.
Logo surgiam lustrosos calombos nas cabeças dos meninos. Só os mais fracos
choravam. Bobos. Por isso mesmo se tornavam alvo predileto das meninas. Quantas vezes corria a esconder-me no enorme
guarda-roupa negro do quarto do meio. Sentia-me culpada por fazer o menino
chorar. A mãe então, enviava seu porta-voz, pau pra toda obra, a ama da
família, que vinha bater à nossa porta.
Amélia, a nossa fiel ama negra, usava de bom senso. Tentava acalmar os
ânimos.
– “Pode deixar... O pai
dela vai logo saber. Assim que sair a última fornada. Ela (eu) vai ficar de
castigo!” Geralmente isto não acontecia. Afinal, eram tantas as reclamações!
Não adiantava mesmo levar adiante aborrecimentos menores. “Coisa de
criança...”
Meu pai, o padeiro galego
do bairro, simpático e comunicativo, nem tinha ainda cabelo branco quando
enviuvou. Disputado pelas solteironas do bairro, principalmente por Dona Olga,
a professora de Matemática da banca da tarde e que nos enchia de mimos. Parecia
que ele andava mesmo era muito ocupado. Não se decidia. Nem por esta, nem por
aquela. Noite e dia se via ao batente, entre o forno e o balcão. Meu pai
costumava acordar bem cedinho. Mantinha
a mão na massa. Da manhã até ao
anoitecer. Até que fosse vendido o último pão do balaio.
Notável paleta de cores.
Aquele dia que se ia feliz. Final da
tarde ao sol poente. No batente da frente já se via cama feita. Breve morada de
cão sarnento. Satisfeito, na má fama
que possuía, o velho cachorro de rua se lambia a nossos pés.
Pingos no chão e bolha
no ar. Regresso ao templo. O velho armário de cozinha. Portas trancadas. Chave
escondida no bolso do avental. A ocultar a razão do efeito inebriante. Desejo
negado moveria prazer intocável. Efêmero existir suportaria o medo no mito da calada
intenção adulta. Sim, porque teria na voz, a chave a vez do “não”. Sua intenção
malvada.
Terrenos baldios. Histórias
reais. Mamonas verdes aí cresciam férteis. Entre fornadas de pão-de-açúcar, seguíamos
soprando os nossos canudos. Bolhas no ar. Assim fomos crescendo inteligentes.
Na sábia arte de driblar os adultos tolos.
Quantas vezes retornaria aos ermos quintais da minha cara lembrança! De
casas abandonadas, dos barrancos molhados. Afamados sumidouros da Rua da Curva
Grande.
Aventura de criança, precaução
de adultos. Medo razoável. O que viria depois? Irresistível orbitar. A sensação
do prazer intocável. Sem mágoas apresso meu passo. Refaço-me em águas antigas.
– Pingos no chão e bolhas no ar!
Valença-Bahia-Brasil
2013
Pingos no chão e bolhas no ar....
Crônicas: “Nada mudou por aqui...”
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