O índio que falava
francês
Brasil Central. Latitude 14 Norte. Outubro de 1982. Já caía a noite. Da
minha base, na aldeia Karajá de Hãwàló, denominado pelos colonizadores
religiosos de Santa Isabel do Morro, às margens do rio Araguaia, na Ilha do
Bananal, um remoto posto indígena, a esse tempo administrado pelo indigenista
Eduardo Almeida.
Em São Félix do Araguaia, na margem
oposta do rio, já nos limites do estado do Mato Grosso com Goiás, hoje
Tocantins, ficava a paróquia sede do
bispo Dom Pedro Casaldáliga. Fundador da
Pastoral da Terra, era ele ideologicamente considerado homem perigoso. Sob um regime
politico autoritário, os militares ainda no poder, este religioso era vitima de variados tipos de
repressão. São Félix do Araguaia, para nós funcionários da Funai, tornara-se lugar
proibido, perigoso. Um terreno minado. Havia gente nos olhando, vigiando. Cochichos
e delações, era prazer de muitos. Algumas vezes estive aí visitando o bispo. Privilégio
meu. Hoje disto tenho consciência. Assistia discussões em torno de assuntos
beligerantes. O índio e o posseiro e principalmente, sobre o assistencialismo por
parte do órgão federal que assistia aos índios.
Missão de trabalho. Rumo norte alcançaria
a aldeia de Macaúba. A seguir, a aldeia Javaé. Alcançando o rio Tapirapé, a
aldeia do mesmo nome e na mesma área, uma pequena comunidade Karajá.
Mineira de Pedra Azul, Rosinha, moça
tímida, era uma professora recém-contratada pela Funai. Seguiria viagem comigo.
Percalços de viagem. Uma aventura invulgar
marcaria as nossas vidas a partir de então. Diria que, prenúncio de tragédia anunciada, mas que
felizmente não chegou a acontecer. Tornamo-nos amigas. Rosinha deixava entrever
na sua face a expressão de natural preocupação. O encontro direto com um mundo
desconhecido até então. Sua destinação seria o posto indígena da aldeia Karajá
de Macaúba, à margem esquerda do grande Araguaia.
Comunicação precária. Valia-se do rádio
ou do telégrafo. Não havia ainda nesse tempo telefone celular, nem tão pouco
computador. Caberia ao chefe do posto de
Macaúba, o gaúcho Lourenço, o manejo daquela parafernália. Seria um meio de
sobrevivência frente ao inesperado.
Isolada, longe do meio urbano, Rosinha teria
que se fazer valer do seu bom senso. Sabedoria seria companheira. Ser corajosa
afastaria os medos. Uma vez por mês, às vezes nem isto, teria a visita de um
dentista, do médico e da enfermeira que viria aplicar as vacinas necessárias.
Como de costume, a cada três meses, seguia
eu em missão de trabalho. Durante a estação das cheias, o transporte, muitas
vezes precário em barcos relativamente pequenos, eram sempre cheios. Os pequenos
aviões que se fretavam, os monomotores, estariam disponíveis somente na época da
estiagem. Nessa específica área de mata isolada, entremeada por rios e lagoas, eu
era a única dentista disponível a serviço da Funai. Por dois anos permaneci
como tal. Até que um dia, o coronel, chefe do departamento de saúde em
Brasília ao qual estava subordinada, olhou para os belos desenhos que estampava. Belos motivos Karajá que a
Xureréa, mãe do Korihete e antiga mulher do cacique Maluaré, havia pintado nos
meus braços e mãos, com tinta de jenipapo e carvão. Virando-se para o assistente ao lado, o
coronel, ironicamente perguntou: "é esta a dentista que queria se tornar
índia?!" Apenas o início do meu fim. No
regresso das minhas férias em Salvador estaria, irrevogavelmente demitida.
Atrelada à uma equipe técnica mista, viajava
rumo às comunidades indígenas. Contornando
a Ilha do Bananal, navegando o braço menor do rio Javaés, chegávamos à aldeia
Javaé e de Macaúba. Rio acima, alcançávamos o Tapirapé, e a aldeia indígena do
mesmo nome.
Calor infernal, mosquitos e desconforto.
Nossas vidas estariam, literalmente falando, nas mãos de Seu Manoel, um
conhecido barqueiro, homem nativo dessa região, considerado bravo e corajoso. Na
sua experiência, de muitos anos, sabedor de cada curva do rio, tornara-se ele muito
respeitado. Confiável. Com ele acreditava-se
em viagem segura.
Término da estiagem. A cada curva do rio,
que ainda se estreitava devido ao avanço das praias, os bancos de areia se
revelavam traiçoeiros. O Araguaia, entre o nascente e o poente, exibia a maravilhosa
paisagem. Única. Novos eventos. Cada viagem revelava surpresas. Jacarés enormes,
sonolentos lagartos me lembravam dinossauros. Um olho fechado e outro aberto,
mas despertos, pareciam em sono
profundo. Seus ouvidos estariam bem
abertos a qualquer movimento mais próximo. Um passante incauto, ave desavisada,
capivara sedenta, por certo cairiam logo no papo do faminto jacaré. Natureza
pródiga. A cadeia alimentar aí se completava. Seus dentes, juntamente com a
força de portentosa mandíbula, causavam receio. Animal poderoso. Todos nós
tínhamos medo dos jacarés. Talvez por sua bizarra aparência. Quando da
aproximação (intrusa) no seu habitat certamente se sentiriam ameaçados.
Seguíamos viagem de maneira plácida, mas
atentas aos obstáculos, geralmente pedaços de pau, troncos de árvores que caíam
dos barrancos costeiros o que poderia causar acidentes. Poderiam danificar a
hélice do motor do barco. Acompanhávamos
enlevadas cada detalhe daquela deslumbrante
paisagem que ia se revelando a cada curva do rio.
Finalzinho de tarde meio nublado. Qual
manto envolvente, assistíamos a descida daquele sinistro cobertor, um manto de nuvens
escuras. O horizonte à nossa frente
subitamente desapareceu. Inflado os
medos, diante de tal aviso, o qual não
se poderia ser ignorado, visto que já
soprava, um forte vento de proa. Eliminadas
assim possíveis dúvidas, chegou-se à uma sábia decisão. Seria de boa prudência
passar a noite num daqueles bancos de areia. O mais alto possível! Desnudado
pela seca do verão, mas que já se ía tangido pelos ventos da nova estação, as
águas do rio já subiam de nível. Aí, não correríamos prováveis riscos. Pelo
menos assim se pensava.
Seu Manoel, cauteloso, diminuiu a marcha
do motor. Aportou bem devagarzinho às margens do alto barranco. Cuidou logo de
levantar a rabeta do motor a fim que esta
não viesse a bater na areia. Correria o risco de danificar-se. A seguir, desembarcou
parte da bagagem. A minha gorda mochila,
a dele e a da professora Rosinha, também avolumada.
Trazia o barqueiro, como de costume em
missão de viagem longa, uma manta plástica de bom tamanho. Quanto a nós, as
duas mulheres, já fragilizadas pela perversa besta do medo crescente, não
trazíamos coisa parecida. Proteção, em caso de chuva num barco aberto. Talvez
por esquecimento, não se cuidara antes desses pequenos, mas importantes
detalhes.
A chuva já se avizinhava. Apavorante. Traria
com ela um forte temporal, com a potência energética de raios e trovões. Fenômeno muito comum a essa época de final de outubro.
Curiosa, notei que Seu Manoel ia cavando
com as suas largas mãos na areia molhada um largo buraco. Esculpiu, na sua
experiência sertaneja, um largo espaço, não tão fundo, mas o suficiente para
caber encolhido o seu avantajado corpanzil. Valor inestimável, aquela sua inseparável maleta de executivo, uma 007 de couro negro, carinhosamente, junto ao
seu corpo logo acomodaria. Seu Manoel
conservava-se calado. Apenas agia. Então entendemos que deveríamos fazer o
mesmo. Por sorte, ainda havia de reserva no barco outras mantas plásticas. Não tão largas como a
dele, mas serviriam, pelo menos para cobrir as nossas cabeças. Seu Manoel, sem
dizer uma palavra, gentilmente, no seu jeito caboclo, logo nos ofereceu.
Antes de adentrar na sua alcova-buraco,
Seu Manoel abriu a maleta 007 e daí
tirou uma arma – um revólver! Meu Deus! Pelo tamanho imaginei tratar-se de um
trinta e oito. Já tinha visto coisa parecida em crônicas policiais de jornal. Rosinha
e eu, ainda com muito medo, não tínhamos palavras para retrucar. Nunca na minha
vida havia tocado numa arma! Rosinha tão pouco.
“Não façam cerimonias! Qualquer coisa...
Podem se servir!!!.” Expressado, de uma maneira tão natural, com tapinhas sobre
o volume que descansava sobre a sua maleta. Isto soou para nós como uma espécie
de caçoada. Homem prático e viajado, Seu Manoel não tinha mais ou menos. Ia
logo direto ao ponto. Ao que falava se dava crédito. Pelo menos por questões de
sobrevivência. Aliás, nunca escutara
antes, principalmente tratando-se de um cavalheiro rude, tamanha ‘gentileza’.
Rastejante, como um lagarto, via quando Seu
Manoel jeitosamente se enfiava sob a larga
manta. Logo via-se coberto, na sua alcova-buraco, ao lado de valioso pertence
–, a sua maleta 007.
Tremendo de frio, e de medo, meio aterrorizadas,
Rosinha e eu significativamente nos
entreolhamos. – Meu Deus! O que será da
gente! Pensei preocupada. Acho que ela também. Este foi sem dúvida um dos
momentos da minha vida em que mais me senti indefesa. Nem durante as minhas andanças pela vasta selva amazônica,
entre Colômbia, Peru e Brasil. Trecho
problemático com o tráfico de drogas, animais silvestres e madeira, faixa de
fronteira tríplice, onde vivi por cinco longos anos, não me sentia desse jeito.
Diria desvalida. Entendi a lição. A partir daquele momento, sem pai nem mãe, seria
cada um por si e Deus por todos.
Caiu a noite. Interminável. Tão densa
como a forte chuva. Mas esta durou breve.
Uma meia hora, talvez. Quando cessou de pingar, dos arbustos sobre os nossos
telhados, providencial plástico de toalhas de mesa com adornos de abacaxis e bananas, algo novo já nos
incomodava sob as vestes. Enormes formigas,
as conhecidas andadeiras, passeavam sobre a nossa pele. Um tormento. O buraco se encheu delas. Não mordiam, mas
incomodavam com a coceira irritante. Na
verdade éramos corpos-vivos, mas sentíamo-nos quase defuntas.
De longe nos alcançava o esturgir de
onças e os mil ruídos de bichos outros. Ameaçador.
Tão longe e tão próximo! Este era o som
da floresta circundante que tomava conta da noite. Ninguém ali iria dormir. Talvez
cochilasse um pouco. Por questões de sobrevivência, nem é preciso dizer, acho
que ninguém, em sã consciência, conseguiria dormir numa situação daquelas. Procurei
afastar a lembrança temerosa da tarde. Aqueles enormes jacarés ao longo das praias, não muito longe de
onde estávamos.
Lanterna prestativa. Seria uma boa arma
de salvação, pelo menos assim pensava. Com frequência clareava o mostrador do
relógio. Acho que estas foram as horas mais arrastadas da minha vida.
Finalmente aliviada, assistia aos primeiros sinais de um final prolongado de
uma madrugada sinistra. A radiosa aurora,
cuja luminosidade, resplandecente no céu ainda meio escuro, logo desvaneceu
os maus presságios. Aos primeiros lampejos do sol logo partiríamos. Sem o café
da manhã. Na ansiedade, enchemos o nosso estômago com água e muitas bolachas,
uma atrás da outra. Só nos restava
sonhar com uma mesa bem posta. Talvez com sorte, pão torrado e banana frita e, o aroma volátil
de um café recém-coado. Apenas miragem distante. Ilusão de faminto.
Paramos em Macaúba. Fomos bem recebidos
pelo chefe do posto, o gaúcho Lourenço. Curiosamente ele era casado com a índia
Suyá, a filha do velho Karovina, um dos
chefes da aldeia Karajá. Comemos bananas
cruas, e beijus sem sal. Ao invés de café, somente água fria do pote, gentilmente oferecida. Abastecemos
o barco com as frutas que Lourenço amavelmente nos ofertou.
Despedidas. Abraços, recados e
recomendações. A professora Rosinha ficou. E nós, o barqueiro e eu, partimos. No
barco, restou um enorme vazio. Sentíamos falta da mineirinha de Pedra Azul. Embora
calada, sua presença somava esforços. Companheirismo.
Finalmente, já no Tapirapé. Preocupada
com o tempo, comecei a pensar como seria a volta a Santa Isabel do Morro, a
minha base já tão distante. A estação das chuvas comumente trazia incertezas. Algo
me dizia, que após missão cumprida, como em outras ocasiões, regressaria sã e
salva. Remeteria à Funai em Brasília para
avaliação de praxe, os muitos papéis, geralmente em quatro vias, relatórios de mais uma
atuação. Quanto à minha pessoa,
restariam muitas dúvidas, e questionamentos lógicos quanto a duvidosa empreitada.
Por sua honesta posição, sempre ao lado dos índios, o indigenista Eduardo Almeida, terminou por ser dispensado. Uma pena.
Xaropes ineficazes. Remédios vencidos.
Afinal, para quem seria o benefício? O
almoxarifado continuaria repleto desses vencidos. O malefício estava feito. A
mortalidade infantil era fato. Quantas vezes se discutia com o bispo esta
espécie de atuação. Estratégia velada de possível genocídio?
Após seis horas de “voadeira” rio acima,
finalmente desembarcava. Os índios, sorridentes, ajudaram a transportar pelo barranco
acima as tralhas necessárias ao trabalho de “arranca-dentes”. Caixas de suprimentos variados. Trazia velas e
fósforos, também açúcar, café e biscoitos, coisas que dividiria com os índios.
Seriam artigos indispensáveis para um mês de permanência, No final ficaria
desprovida mas comungava o bem comum. Comia satisfeita a comida de todos.
As senhoras, missionárias católicas, as simpáticas
irmãzinhas francesas da ordem de Santa Tereza, vieram me receber com sorrisos
de boas-vindas. Apesar do calor sufocante, trajavam-se elas, invariavelmente,
em seus hábitos negros. Os índios, se viam livres de adereços, alguns de calção
e outros, na sua maioria, andavam seminus. Questionável era a presença das
missionárias católicas por parte de antropólogos ortodoxos. Mas, bem ou mal,
dia e noite, estariam elas prontas a arregaçar as mangas, assistindo a
comunidade na medida do possível.
Partos complicados. Malária e disenteria. Males comuns. Fisgadas
de arraia eram comuns aos homens que saíam para pescar. Acidentes ali não faltariam.
Médico, só de muito longe. Às vezes levavam três meses para chegar até ali. A depender
da gravidade vinham de Brasília, pois o da base encontrava-se sempre em deslocamentos. Fazendo cursos ou em
campanha de vacinação.
As missionárias francesas, responsáveis
pela catequese dos índios, eram de um apoio logístico inestimável. Principalmente
a irmã Maria. Enfermeira graduada, já havia atuado na África, no programa do Sem
Fronteiras.
Graças ao aparato radiofônico da missão,
podíamos solicitar um barco ou um avião a fim de conduzir o funcionário de
volta à sua base. A estas alturas as
águas já estariam bastante altas e a viagem de avião monomotor se tornaria quase
inviável. Voltaria de barco outra vez, torcendo para que fosse o de Seu Manoel.
Andava pelos estreitos caminhos da mata
entre a aldeia e a sede da missão. Bem, não sei onde começaria a realidade ou
onde terminaria a minha vã fantasia. “Bonjour
mademoiselle!”, Era a voz do índio Romany. Espantou-me tal saudação. Bizarro, vinda
da boca de um índio Tapirapé. Naquele
longínquo meridiano de uma isolada selva mato-grossense, imaginei possível
ordenação, equivocada da luz, na trajetória de primitivos costumes.
Enquanto aí estive, Romany tentou ensinar-me
algumas palavras da língua o Tupi. Era bem vinda à aldeia Tapirapé. Romaní tentou ser meu amigo e assim o conseguiu.
Mostrou-me seus desenhos a lápis de cor. Neles se distinguiam traços próprios daquela
cultura. Eram besouros, borboletas e o icônico avião da Funai, cujo símbolo, bem conhecido por sinal, um vistoso cocar
de penas de araras, nas cores azul e amarelo. Inconfundível.
Se por acaso chegasse alguma autoridade
de Brasília, Romaní fazia questão de usar o quepe e o rayban do piloto. Não sei
como conseguiu. Na verdade sentia-se ele comandante, do seu pequenino avião de
papel. Pelo seu desenho mostrava-se que nem um chefe, uma pessoa importante. Fizemos
amizade. Romaní ensinou-me as trilhas secretas da floresta. Revelou-me
preciosos mimos da natureza. De variadas cores, passarinhos e aves maiores. Quanta
diversidade! Fazia questão de citar todos os seus nomes. Tamanha empolgação. Seria
quase impossível gravar os muitos nomes, principalmente na língua Tapirapé. Flores
pequeninas, delicadas orquídeas brancas, inacessíveis, no alto de longos
troncos, maúbas centenárias. Belas
imagens. Inesquecível panorma, restaria-me de consolo.
Somente o básico. Um fogareiro a gás. Um
muflo pesado. Uma caixa de metal com o instrumental que necessitava para o
trabalho. Romaní passou a acompanhar-me nos eventos odontológicos. durante a locomoção
pela aldeia ele fazia questão de carregar a pesada tralha. Se precisasse de
água, lá ia ele pegar. A mais limpa
possível, num trecho de rio ou distante
igarapé, meio escondido entre as árvores. Água boa, dizia ele. Além da função
de arrancadora dentes, também tirava
moldes dos desdentados a fim de confeccionar as dentaduras. Eram tantas! Na
verdade, o trabalho do dentista seria erradicar, definitivamente, os dentes
estragados, extraindo-se os injuriados. Seja de adultos ou de crianças. Sentia
pena. Não havia nenhum tipo de prevenção odontológica. Falava-se muito. Vocês
devem escovar seus dentes após as refeições... Mas eles comiam a toda hora,
quando bem entendessem. Era um coquinho aqui, um pequi ali, enfim, como se diz
nessas situações, era o mesmo que tentar encher um saco sem fundo. Procurava
ensinar-lhes como se deveria escovar os dentes. Palavras ao vento.
A Funai enviara a pedido meu, um lote de
caixas com escovas de dentes, em variadas cores. Todas em tamanho grande! Para minha surpresa,
na véspera da partida, já via algumas
dessas espalhadas pelos arredores, nos terreiros das malocas. Serviam apenas
para escovar os utensílios domésticos. Se não serviram para seus dentes, pelos
menos, para limpar a fuligem das panelas já se mostravam eficientes. Cultura
ultrajada. Alimentação introduzida. Açúcar e amidos. Bombons e bolachas. Danos
consequentes.
Uma tarde, após longa caminhada
juntamente com algumas crianças, alcançamos o plateau da montanha próxima. Uma
elevação de talvez noventa metros de altura e que sobressaía imponente na
vastidão daquela floresta plana. Espíritos do universo Tapirapé ali habitavam.
A vista se mostrava fascinante ante os efeitos lúdicos da luz poente. Variações
idílicas em torno do verde. Sentia-me realmente preenchida. A interpretar o
mundo ao meu redor, aquele pedaço de paraíso, onde os mosquitos e o calor
fariam qualquer um desistir. Aliás, desconforto não sentia. Agonia sublimada.
Sempre ocupada, os dias rapidamente iam
se passando. Com pesar, conferia no calendário de bolso, que o dia da partida estaria
próximo. Nostalgia. Numa manhã formada por
nuvens escuras, comecei arrumar a bagagem. Agora bem maior, com os presentes que
havia recebido dos índios. Romaní foi avisar-me, lá na enfermaria, que o barqueiro, atendendo ao pedido do radio
da missão, já havia chegado. Romaní parecia triste, e eu também. Eis quê
naquele instante final, ressuscitando uma certa mentalidade catequista – que ainda habitava em mim, sem
muito refletir, ofertei-lhe exultante, uma lata de “Biscoito Maria”. Foi aí
então, que caí na desgraça sem volta. A da
culpa imediata. Pois, aquele universo orgânico, único, em meio a tantas bananas
e tubérculos nutritivos, acabara de ser violado. E por mim! Entretanto, via num sorriso aberto, e sem
restrições de estética, de levar a mão à
boca, o agradecimento sincero. Encheu-me
de satisfação.
Romaní correu até a sua maloca. A
família o acompanhava. Pronto já retornava, com outro presente: uma pequena e
delicada cabaça, decorada com graciosos desenhos geométricos, um motivo
Tapirapé, que ele mesmo havia feito. Agradeci emocionada.
Visão surrealista – cachorros famintos e
galinhas alvoroçadas já brigavam por pedaços crocantes de biscoito. Subitamente,
para minha surpresa, sem demonstrar nenhum constrangimento, via quando ele abria
a lata de Biscoito Maria e a esvaziou de todo o seu conteúdo. Eu vi Maria sair
da lata! À vistosa lata dourada destinava-se
uma outra função: serviria para guardar a sagrada plumagem das aves. De arara, azul
e vermelha, também de colhereiro, periquito e outros pássaros raros. Penas e
plumagens. Tão especiais, eram como se fossem um caro artigo de joalheria. Eram
as joias da floresta que enfeitariam os corpos em rituais sazonais. Rituais de iniciação, ocasião de nascimentos e,
principalmente, cerimoniais fúnebres.
Os biscoitos não seriam tão importantes assim.
Entendi. Mais uma vez ouvi de Romany o suave, “merci, mademoiselle”. Proporção
inversa, ou fruto metabólico do meu ego? Sua vozinha entrou no meu sistema e
nunca mais daí saiu. O fantasma do espírito desse tempo, de vez em quando, ainda em mim se faz presente.
Lembrei-me então de um fato marcante,
quando da passagem dos meus anos de adolescência. Foi no ano de 1969. Meu pai
comprara o nosso primeiro aparelho de televisão, para que eu e meus irmãos
menores pudessem assistir a chegada do homem à Lua. Feito temporal. Importante.
Um marco na história da nossa cultura. Responsável por inexoráveis mudanças que
vieram a seguir. As guerras ideológicas e o surgimento do universo eletrônico.
O mundo realmente encolheu. estrambólico e feioso, assim era o móvel do aparelho de
televisão. Tinha o formato de uma caixa grande, sustentado por três finas pernas
de madeira roliça no estilo “decô”. Novidade esta que eu e minhas irmãs logo achamos
por bem adaptar ao nosso convívio. Assim, o cobrimos com um paninho de crochê, encimado
por gatinhos coloridos de porcelana barata.
Culturas autocnes, tão diferentes. Lá na
taba contente, via cachorros famintos, brigando por pedaços crocantes de
“Biscoito Maria”. Na minha imobilidade, diante desse momento único e sem as conexões
temporais necessárias, nem no passado nem no presente, caía eu em desamparo. Despencava
no abismo das desproporções culturais. Nas selvas quentes do Tapirapé, em meio
a uma tarde chuvosa de final de outubro, levitava. Em contentamentos. Voei por instante, nas asas
transparentes do besouro verde. No Tapirapé, Romaní era um índio que falava francês.
Amália Grimaldi
2013.
Amália Grimaldi
2013.