Um poema constrangido
Ruas meladas. Ruas apertadas. Entre paredes de frágil adobe respira-se
ar saturado. Inquietação comungada. Portas abertas. Cumplicidade de casas
devassadas. Corredores de todo dia. Garganta sensível, passagem de visceral arroto.
Úmida organicidade de seus bolores. Mofos domésticos. Conflitos familiares e
rituais de mesa posta.
Arrastar de cadeiras. Sons abafados são vozes de resignados. Lá fora, o
cão, ladra sem dono. Ninguém dele se aproxima. Pede cautela. Nessa rua apertada, mora um carro amassado. Apenas
figuração da falsa ideia de emancipação – breve alforria. Dilui-se no engano do
pertencer. Altas taxas tributárias conduziram-no à falência de seus múltiplos
órgãos. Pingos de goteira cantam sua última melodia na sofreguidão do ritmo das
horas corridas. Desenha a arte do tempo a sua distinguida escrita, oxidação
inevitável. Alquimia de horas corridas. A bela cor da ferrugem; conceitual
expressão de óbvia narrativa.
Rostos, muitos rostos. Rostos morenos, rostos negros. Rostos
estrangeiros. Rostos nativos. Muito calor, gente suada. Apaziguador, é esse vasto céu azul que os olhos procuram.
Grandeza de todos.
Sombras e luzes. Sol necessário. Impunidades se mostram desiguais, em seus
volumes legais. Falsidade ideológica. Falsos papéis. O sistema obriga. Sem isso não se anda. Ouve-se
a voz inquietante. Um grito. Um pedido de socorro. É a ira do ser arruinado –
pelo ódio ou pelo amor.
Louça trincada. Visão esmaecida. Cores desbotadas. Vontade desmaiada.
Fenômenos apáticos – abstinência de escolhas. Decadência do espírito crítico da
identidade coletiva. Luz acesa, vigília dessa noite longa, ao longe se
distingue. Nem todos dormem. O azoto da
arrogância incomoda. Como fede esse sistema! Rege o destino dos mal nascidos,
concebidos em lugar confinado. Não pediram para que isso acontecesse. O choro da criança, o movimento da mão na
carícia; breve resignação. Apazigua e conforta. Mas não dá jeito.
Linhas tortuosas. Labirintos e
corredores de perigos. Entre paredes de abobe comum, o sinistro e a razão,
convivem lado a lado. Xingar o vizinho é ponto crucial. Chegando-se por vezes
ao debate fatal. Seu ponto final. Mas, se a noite é de prata crescente, com
sorte, será de prata cheia.
Ariadne
traz com ela o providencial cordão; a guia mestra da sensatez. Curioso efeito
ambíguo. Expansão proibida do ser no
terreno fértil dessa longa noite. Convence, na razão. O Minotauro, então, será
vencido.
Aqui, ao fundo desse beco medroso, não é um fim de mundo. Vejam, os
gatos encontram-se no cio! Contudo, é o homem, quem poderá se arruinar – no
ódio ou no amor.
Aqui, ao fundo desse corredor escuro, uma lua de prata se distingue. E
no silêncio do ar parado, o piar da ave noturna, é suspeita de coisa temida.
Semeia inquietação.
Aqui, ao fundo desse húmido corredor, ama-se o lugar onde não se está.
Ama-se a cara de outras gentes. Mas tudo não passa de metáfora na rima de
paredes sem métrica. Assim, escrevo esses meus versos quebrados, no ritmo de horas
sofridas, alegoria concebida. Mera expressão de voz inquietante. Meu breve e
concernente constrangido poema.
Autor: Amália Grimaldi